NO IGUAPE

Os caminhos de Santiago

"Chegamos novamente a uma freguesia de terras boas e próprias para o plantio de cana-de açucar, o vale do Iguape .

Mais velha que a freguesia de Cachoeira, a freguesia de Santiago do Iguape foi criada nos últimos anos do século XVI com o nome de Paraguaçu. A primeira igreja matriz foi construída no engenho de São Domingos da Ponta, dedicada a São Tiago porque seu proprietário, Antônio Lopes Ulhoa, era cavaleiro da Ordem de Santiago de Compostela .
O extenso rio Paraguaçu, que empresta o título ao nosso projeto, teve seu nome escrito como Peroaçu ( por Mem de Sá), Paraassu (por Nóbrega), Paraguaçu (Gabriel Soares de Souza e o Padre Jesuíta Simão de Vasconcelos) e Perasu (Franz Post, em 1645) . Por ele (es)correu toda a riqueza gerada no Recôncavo Baiano.
Fundamental para o comércio, o Mar Grande (do tupi para-guassu) já é citado na primeira expedição guarda-costas que aportou no Brasil, em 1501. Nele, em uma ilha denominada "Dos Franceses", no baixo curso deste rio (proximidades de São Francisco), os índios comercializavam com estrangeiros. Suas águas férteis atráiam os índios Paiaiás para pescarias até a segunda metade do século XVII. O medo de ataques indígenas está expresso na arquitetura regional mais antiga ( Capela de Nossa Senhora da Pena, por exemplo).
Alguns dos primeiros colonizadores do Vale do Iguape foram: Antônio Peneda; Antônio Rodrigues, dono de fazendas e canaviais; Antônio Lopes Ulhoa, que desde 1587 possuía um engenho no vale ( o San Domingos da Ponta) e Antônio Dias Adorno , ancestral de uma das mais influentes famílias de Cachoeira durante séculos.
Atualmente, a professora Maricélia conta a história de que por volta de 1564 a bacia do Iguape era formada por 22 engenhos. Dentre eles, estavam : Engenho da Ponte ou Ponta ( o San Domingos da Ponta) , Engenho do Meio (também denominado de Horta, pertencia a família Bulcão), Engenho da Campina, Engenho Baranhão (pertencia a família Aragão e hoje é a Fazenda Exemplo), Engenho Acutinga (hoje Opalma, sede de uma fábrica desativada de azeite de dendê), Engenho Santa Catarina (também denominado de Bela Vista), Engenho da Cruz, Engenho Cassinum (era divido em três partes: Ponta Grossa, Guaiba e Guaibinha), Engenho Novo de Baixo, Engenho da Vitória ( até 20 anos atrás ainda produzia aguardente, foi o que mais prosperou e também o que durou mais tempo), Engenho da Praia, Engenho Velho ou da Pena, Imbiara, Calombá (ou Calembá, cujo nome era engenho de São Benedito do Calembá) e por fim o Engenho Central Santiago do Iguape que deu origem a Vila de Santiago a qual foi construída em cima Fazenda Monte Alegre que pertencia aos donos do engenho da Ponte.
As regiões de Caonge, Dendê e Caimbongo acredita-se que são remanescente de quilombos.
Na vila de Santiago criou-se a freguesia do Iguape, conhecida naquela época de colonização como "A Gerença", considerada o pólo comercial da região. Neste local administravam toda a produção de cana-de-açúcar e comercializavam piaçava, estopa, azeite de dendê, farinha de mandioca, quiabo e outras mercadorias. Havia também a fabricação e venda de cestos e esteiras.
A pesca naquela época, ao contrário de hoje, não era a principal atividade produtiva. Feita através de gamboas, ela servia apenas para o lazer ou para um acréscimo na renda familiar. A subsistência da maioria das famílias era proveniente da agricultura no cultivo principalmente da mandioca, da cana-de-açúcar, do dendê e do quiabo, além da fabricação caseira do azeite de dendê e da farinha de mandioca ( muitas famílias tinham uma casa de farinha no quintal).
Haviam também famílias que sobreviviam da extração da piaçava, da madeira, da engenharia marítima (com a construção de barcos, saveiros e outras embarcação) e do comércio.
As mercadorias produzidas na região eram comercializadas na freguesia do Iguape ou transportadas diretamente para Feira de São Joaquim / Salvador através de embarcações.
Conta Seu Tatuí, senhor de 66 anos de idade, filho do Iguape, dono de um Quiosque (conhecido também como o "point" da seresta de Santiago) e do único estaleiro sobrevivente do distrito, que Santiago já chegou a ter quatro estaleiros funcionando. Produziam cerca de um barco (estilo saveiro) por mês , vendido para pessoas da própria região, empregando cerca de 60 pessoas. Todo transporte era marítimo, inclusive de pessoas doentes.
Os navios (dentre outras embarcações) iam à São Francisco e ao Iguape até 1960. A partir de 1964 apenas os saveiros continuavam fazendo o transporte, e em 1968 a estrada começou a ser construída e assim o transporte marítimo foi sendo desativado.
Várias pessoas que trabalhavam na carpintaria naval passaram para carpintaria civil e tiveram que se mudar Salvador. O estaleiro que antes empregava 25 carpinteiros, hoje tem apenas quatro pessoas trabalhando: Seu Tatuí (dono do estaleiro que foi herdado do sogro), Pedro (que também é artesão) e mais dois senhores - Coisas do " progresso".
A professora Maricélia nos relatou que agricultura no Iguape começou a decair a partir de 1975, vários fatores influenciaram neste processo, um deles foi o aumento da população, " ... nem todos possuíam um pedaço de terra e os que tinham ficavam com receio de emprestar principalmente depois da Reforma Agrária..." Assim, a pesca foi sendo instituída como a principal atividade produtiva dando sustento a maioria das famílias. O seu pai era fazendeiro, carpinteiro, pescador e alfaiate. Em Santiago já chegou a ter escolas, tendas de alfaiates e alfataiarias.
Maricélia trabalha na Escola Rural de Santiago lecionando nas séries iniciais do ensino fundamental, realiza um trabalho de incentivo do conhecimento e da valorização da história e da cultura local. Estudou Magistério em Salvador e depois que os pais faleceram fez um pacto com seu irmão Inácio que ambos não sairiam do Iguape.
É casada com Chico Rangel, um dos herdeiros da fazenda sobre a qual está construída a sede do distrito. Ele nos relatou que um de seus parentes, Piroca Rangel (Pedro Paulo Rangel), era pequeno comerciante e funcionário da fazenda. Esta era propriedade da família Novis, também atual dona da fazenda Campina. Numa negociação acabou se tornando proprietário de parte da fazenda, que já tinha algumas casas construídas. Até hoje ele e os irmãos recebem uma taxa anual dos moradores que segundo relata não dá para muita coisa, além de pagar impostos.
Seu Aniceto, ex-vereador , nos disse que antes corria um certo capital no local. Tinha um comércio regular e muitas casas comerciais como as de Pedro Rangel, Carlos Lima Silva, Felipe Amorim, João Amorim, o próprio Aniceto e outros. Havia também armazém, panificadora, era comércio bom. Tinha loja de tecidos, armarinho, correios, embarcações que transportavam verduras e outras coisas para Salvador: duas, segunda-feira; três, quarta; duas, sexta e duas, domingo; iam todas carregadas de quiabo, que tinha demais.
Há poucas décadas atrás, veio o comprador de terra que fez a Opalma. O povo deixou de plantar. Mudou muita gente para Acupe, município de Santo Amaro. A OPALMA tomou conta das terras, acabou administrando mal, e a indústria foi a falência, deixando como herança a miséria na região.
Seu Aniceto foi pescador, plantou roça, teve casa comercial, onde trabalhou por muitos anos. Em 76, foi convidado pela população para ser candidato a vereador e foi o mais votado de Cachoeira (neste tempo Santiago não tinha mil eleitores); teve 380 votos. Começou a trabalhar por Santiago.
A praça era só mato. Não se viam as casas do outro lado. Tinha três salas de aula, uma professora do Estado - as do município eram leigas. Então, pediu mais professoras. Tomou posse em 01/02/77. Sua prioridade foi a educação e trouxe até mestras de Cachoeira. Às vezes, hospedava-as em sua residência. Segundo ele, Iguape hoje trabalha com matéria-prima dele.
Nesta época, existia o projeto de uma Sociedade Amigos do Iguape, um projeto de 1957.Faziam as reuniões nas casas de terceiros como: o pai de Inácio, irmão da Profª Maricélia, Antonio Calafaz.
Seu Aniceto sempre foi convidado a participar dessas reuniões. Decidiu participar e foi lendo os livros de atas para acompanhar de perto esta sociedade. Em conversa com o deputado Rocha Pires, este sugeriu que fizesse um requerimento ao prefeito, Fernando Wilson Magalhães, solicitando uma ajuda em nome da Sociedade. Foi feito uma doação de 10.000 (dez mil cruzeiros). Com este dinheiro, foi construída a atual sede, com a contribuição de algumas pessoas de Santiago. Foi muito importante.
Santiago também teve uma escola de filarmônica. Conseguiram os instrumentos e estes foram emprestados aos alunos e aos poucos foram sumindo.
Foi ele quem solicitou a construção do prédio escolar Pedro Rangel. Foi ele também que pediu a construção da escola em: Tabuleiro da Aguaiara, Brejo, todos povoados do Iguape e outra na Cascaleira; reativou uma escola na Campina, que funcionava no casarão. O terreno para construção do Colégio Eraldo Tinoco, foi doado pela família Rangel, conseguido pelo mesmo.
O seu irmão, também ex-vereador, não conseguiu se reeleger na eleição passada.
Seu Aniceto é muito popular e tem hoje, em Santiago, 104 afilhados.
Mesmo com todas essas as conquistas, da vida política sobraram muitas mágoas. "Vale a pena ser político? Não vale a pena ser político", nos disse.
Outra liderança bastante decepcionada com a política do Iguape é Lena, que desabafou: "... o que acaba com tudo, o que arrasa com tudo é a política ..."
Ela já foi candidata a vereadora por duas sem obter muito sucesso. Organiza um grupo de teatro desde dos treze anos de idade ( foi uma das principais articuladoras de peças teatrais e festas na comunidade) e é também líder espiritual da religião messiânica no Iguape.
Lena nos relatou que em 1988, durante o governo de Valdir Pires no qual foi lançado um projeto da Legião Brasileira de Assistência - LBA-incentivando a criação de pequenas e micro-empresas.
Fundou-se a Associação de Moradores do Iguape, da qual foi a primeira presidente. Conseguiram, com apoio deste projeto, viabilizar cinco micro-empresas em Santiago: uma doceria (com oito funcionários), uma oficina de corte-costura (com nove funcionários e ajudantes), a casa de azeite de dendê ( agregava mais de 15 funcionários), criatório de ovelhas e fabricação de material para pesca. Infelizmente essas empresas se dissolveram após a sua saída da direção da Associação, a qual ficou praticamente parada por cinco anos.
Teve também o projeto da CAR ( órgão ligado ao Governo do Estado) que fazia investimentos nas zonas rural e urbana de Cachoeira. Lena participava das reuniões de um Conselho criado pelo órgão e tentou viabilizar a construção de um criatório de peixes e camarões no vale do Iguape. Não obteve sucesso, o Bahia Pesca ( outro setor do Governo) condenou a área do rio por não haver extensão suficiente para construção de um criatório que beneficiasse a toda comunidade, pré-requisito para efetivação do investimento.

Antes era assim...

As mudanças nas festas profanas e religiosas contrariam muita gente. Soubemos de algumas delas como a da festa do padroeiro, São Tiago. Na véspera da festa, os pescadores enfeitavam as canoas, fazendo uma procissão marítima até São Francisco. Já no dia, a igreja lotava para prestigiar o evento, o que não ocorre hoje. Na procissão do padroeiro, as moças que puxavam o ritual com cantigas religiosas, usavam vestidos brancos com alguns detalhes vermelhos. Eram senhoras, em sua maioria, mostrando que os jovens não estavam muito devotos a ponto de correrem todo o local carregando os santos. São Tiago estava muito modesto na sua representação. À frente dele, com maior destaque, uma santa liderava o percurso: Nossa Senhora. A procissão iria correr todas as ruas de Santiago, para protegê-las e, ao mesmo tempo, alegrar os idosos, que já não podiam sair de suas casas.
Queima de fogos e cânticos alimentavam o festejo:

" Daí-nos a fé
Oh! Virgem
O bradoar abençoai
Queremos Deus
Eu é o nosso Rei...ei
Queremos Deus
Que é o nosso Pai"


Dona Pequenita, 75 anos, nos disse que as festas antes eram muito boas: havia palanques, bandas de música e eram três dias de festa. Eram são Tiago, São Benedito e Nossa senhora da Conceição.
"Hoje as festas é uma missa e pronto, ou na sede e todo mundo enche o bolso"
No tempo em que era moça , fazia piquenique com as amigas. Era uma grande disputa entre as ruas. Se a rua Monte Alegre fizesse um cozido, a outra não participava.
Naquele tempo, pediam esmola paras as festas. Tinha comunhão e missa mensais. Na Igreja tinha cama, fogão e banheiro para o padre que se hospedava lá.
Dona Pequenita critica muito a maneira dos jovens de hoje . Antes, os pais não deixavam as moças irem ao baile, porque diziam que moça no baile era comprada. Só iam em festas de Reis ou familiares e saíam sempre com uma pessoa mais velha. Ela citou o terno "Primeiro Nós" e "Cruz Vermelha" depois veio o "Ideal". A sua madrinha fazia um terno no qual ela foi a estrela pela primeira vez. Cantava bem. Agora, "só querem saber de pular".
O Reis ( terno de reis), antigamente , era surpresa. Escolhia uma casa, chegava cantando , a dona da casa só podia abrir quando eles cantavam.

" Viemos cantar o Reis
Como se canta na corte,
E o senhor, dono da casa
Deus lhe dê uma boa noite."

Depois de abrir a porta, começava o samba de roda. Eles levavam comida e bebida, porque o dono da casa não estava preparado.
No carnaval tinha afoxé, nego fugido- que era pintado todo de preto, "com os beiços vermelhos, danado correndo pela rua"; hoje eles passam lama.
Quando era tempo de festa havia entrega de bandeira - Santamazorra. Saíam com uma caixa cheia de porcarias, bonecos e ficavam pedindo esmola para Santamazorra .Quando a pessoa dava dinheiro, mandava cantar.

" Santamazorra jurou
Coração de pedra dura
Todo dinheiro que ganha
É pra comprar rapadura"

Tudo isso acompanhado com palmas e violão. O dinheiro que tirava era para fazer as festas e samba. A seresta apareceu depois que Dona Pequenita casou, mas seu marido não gostava que ninguém a abraçasse.
Seu Tatuí, 67 anos, dono do point de serestas de Santiago, recorda-se com saudades do seu tempo de juventude, conta sobre os bailes que aconteciam nessa época no distrito. Neles, os homens só podiam entrar engravatados . A gasosa ( uma espécie de refrigerante ) e a cerveja eram servidas "quentes" porque não tinham geladeira. Nos bailes havia muita paquera: os rapazes compravam doces para agradar e conquistar as moças.
Naquele tempo havia mais homem do que mulher no Iguape, muitos rapazes brigavam para não perder suas namoradas, seu Tatuí foi um destes. Teve que casar cedo porque engravidou a sua senhora, "antes era assim , o homem tinha que ser homem", os pais obrigavam o casamento. Tiveram cinco filhos cinco filhos e em 2004 farão 50 anos de casados.
Lembra-se do nego fugido, uma espécie de brincadeira performática na qual alguns homens se pintavam com carvão representando os negros que fugiam dos engenhos enquanto outros fingiam ser os capitães do mato que saíam correndo pelas ruas e matos tentando capturar "negos" que haviam escapado , quando encontravam algum "nego" davam tiros de espingarda de espuleta, laçavam na corda e prendiam "o danado".
Tinha também a Chegança: os homens saíam dançando pelas ruas, iam de Santiago até Saubara e vice-versa.

Um projeto para Santiago

Numa noite de sábado recebemos uma visita inusitada na pousada. Dois rapazes pediram licença, perguntando se éramos da universidade e dizendo que tinham algo para nos mostrar. Maurício e Rogério, um carpinteiro e outro comerciante, não necessariamente nesta ordem, apresentaram um projeto de urbanização e criação de uma praia para Santiago. A "planta" feita toda em lápis de cor mostrava uma praia que ia desde a igreja até próximo ao pontilhão, amparada por um muro de contenção e um aterro de areia. Na praia além de quiosques, tinham casais namorando, nadando. O interessante é que no desenho muitas casas que ficam próximas ao lagamar foram simplesmente abstraídas.
Após a apresentação, perguntaram se poderiam contar com nosso apoio, já que seria importante para o turismo da região e não teria impacto ecológico. Insistimos em dizer que não poderíamos fazer muita coisa, nem colocar o nome da universidade num projeto desse que requer um estudo técnico com avaliações do IBAMA, Marinha, prefeitura, e, sobretudo, uma maior articulação da comunidade em torno da idéia. Explicávamos qual o nosso papel na comunidade, quando eles apresentaram mais dois desenhos com escudos para as escolas Rural e Pedro Paulo Rangel, que não possuíam farda. Numa delas podia-se ver alguns ramos de café e cana de açúcar, que representariam respectivamente as riquezas do Brasil e Santiago; na outra, algo mais simples: um livro aberto. Ponderamos que quem podia avaliar isso seria a própria escola e a Secretaria de Educação, lembrando que a falta da farda pode ter relação também com a questão financeira dos moradores.
A conversa não evoluiu muito em torno das idéas, pois insistiam em pedir apoio, ao mesmo tempo que reafirmávamos nossa proposta. No entanto, eles nos contaram algumas coisas curiosas como a história do "milagre de São Tiago". O "caminho de Santiago" é um caminho de areia pelo meio do manguezal que vai até a Ilha do Capim, sem que a pessoa molhe os pés. No meio da Ilha do capim tem o "poço dos milagre de Santiago", que hoje em dia está seco, mas onde várias pessoas já alcançaram muitas graças. Outra coisa curiosa foi a descoberta que Santiago já tivera um cinema no passado, o Cinema São Jorge, que funciona num prédio próximo à matriz , em frente à casa de Inácio.

O que produzem, para quem produzem, e como produzem...

"As mulheres de Santiago, / Com sua fortaleza fibral
batalham todos os dias, / Para elas isso é normal.
Não percebem que têm direitos /Assim como os homens os têm,
Conformam-se com a vida /Sem exigir nada além."
Nalva Santos

Santiago do Iguape e São Francisco do Paraguaçu são distritos separados por sete quilômetros de estrada e com população estimada 5.000 e 1.500 habitantes respectivamente. Compartilham muitas semelhanças: clima, solo, paisagem e sobretudo o "Sistema Produtivo": pesca e mariscagem, único meio de sustento da maioria da população. O conjunto de condições climáticas e a localização dos dois distritos parecem bastante favorável à piscicultura. Porém a população pesqueira encontra sérias dificuldades no escoamento da produção, ficando limitada a negociatas com o comércio local.
Outra dificuldade apresentada pelos pescadores é a falta de recursos para a compra de equipamentos básicos como: canoas e redes de pesca (pois boa parte trabalha com material dos comerciantes). Seria necessário para que alcançassem autonomia, a aquisição de outros equipamentos: freezer, caminhão frigorífico e até um depósito para que os pescadores conseguissem negociar o pescado com melhores condições de preço, o que garantiria maior liberdade e independência, permitindo uma (re)organização em torno deles (pescadores) e do comércio local.

Andada do caranguejo

Durante o dia de domingo aproveitamos para conhecer a tão falada "andada do caranguejo", que ocorreria uma ou duas vezes ao ano: a primeira após o Dia de Reis e outra normalmente no carnaval. Segundo Tiago, professor da Escola Rural, em períodos de trovoada, no verão, os caranguejos ''ficam doidos''. Desde o dia anterior que víamos muitas pessoas passando pela praça com enormes sacos cheios de caranguejo, mas não imaginávamos como seria. Fomos ao manguezal, sem a indumentária exigida - tênis, botas ou luvas -, apenas com um saco e a experiência de Germano, membro do grupo de dança. A atividade é mais divertida do que arriscada, e contrariando as gozações e previsões dos moradores locais conseguimos pegar uns trinta caranguejos.

Soubemos que apenas nesta época do ano o caranguejo é uma maior fonte de renda para os moradores; já nos demais dias do ano, o lucro não costuma compensar o trabalho.

Religião

"Quando o homem tem que enfrentar a morte possível a qualquer hora do dia ou da noite , reza mais do que aquele que se sente em segurança na sua casa" Carlos Ott, acadêmico e historiador

Dona Dodô

No início, havia o temor do inferno, então se construíram as igrejas com altares para quase todos os santos. As capelas também foram palco dos sacrifícios em troca das graças divinas ou somente um pedaço do céu. Diante disso, ouvimos de dona Dodô, contadora de histórias, que não dispensa a tradição das rezas antigas: ''Hoje as pessoas não tão rezando mais, tão alinhavando''. Ela afirmou que as 21 imagens do Convento de Santo Antônio, em São Francisco, passavam beleza e ostentação para quem andava por ali.
A devoção era tanta que citou os nomes dos santos dispostos nos diversos altares. Avisou que em cada um deles havia um Senhor do Bonfim. No altar-mor: Jesus crucificado, Senhor do Bonfim, São Tiago, a Custódia, Santo Antônio de Lisboa, Santo Antônio de Almirante, São Gonçalo, Coração de Jesus e Santa Rita; na sacristia: São Jorge, Nossa Senhora de Lurdes, Deus Menino, Senhor Morto, Nossa Senhora Menina, Senhor Morto, Santa Rita, Retrato das Pedras, Capa da Custódia, Guarda Sol do Santíssimo, Nossa Senhora do Livramento, quatro Senhor da Cruz e assim por diante. ''Quem podia dar detalhe, tudo já morreu''.
Mas depois que chegou as outras irmandades, os vigários…'' tudo mudou'' e tanto as festas, que traziam a tradição de passar a bandeira, quanto as rezas foram alteradas. ''Eu só vou naquilo que eu encontrei'', afirmou.

Lena

Nossa conversa com Lena foi muito interessante. Realizamos tal entrevista em sua casa-templo(?), onde ela falou sobre religião e seu envolvimento com o Messianismo, de M. Sama - ela é uma espécie de introdutora dessa prática religiosa no Iguape. Falou bastante das características e benesses de sua religião, o que representa o Jourei - espécie de passe energético-espiritual(?) - e como há sete anos conduz os cultos messiânicos no Iguape. Apesar de suas práticas espirituais se relacionarem com o universo religioso oriental, encara sua ligação com o culto aos orixás como um "débito" deixado por seus antepassados - sua relação com os preceitos, crenças e entidades das religiões afro já vem de família. O caruru, que até hoje dá, também faz parte desse "débito".
Sua atuação nos eventos culturais-religiosos também foi um importante tema da conversa. Pelo que contou, sempre foi uma das principais articuladoras de peças teatrais (para as quais escreve textos e dá aulas de representação) e festas na comunidade. Destacou a "Missa do galo", o "Nascimento de Jesus" e a "Paixão de Cristo", peças produzidas para comemorações específicas. Atualmente existem mais ou menos 23 pessoas em seu grupo teatral, número que aumenta com a proximidade de alguma celebração. Durante a Semana Santa, por exemplo, são mais de cem pessoas envolvidas nas dramatizações. Também conversamos sobre outros assuntos, como política, cultura etc.

Iaci

Com a professora Iaci, também conversamos sobre religião e o misticismo que envolve esse tema na pequena comunidade do Iguape. Antes de relatar algo sobre essa conversa, vamos recordar o número de religiões/denominações que há no vale: o tradicional Catolicismo; o velado culto aos orixás (Candomblé); o culto de origem afro-indígena (a Umbanda/Mesa Branca); o Espiritismo (Kardecista); os cultos evangélicos e batistas; e o já citado Messianismo, de M. Sama. Iaci, nossa querida Tica de Zélia, que conhecemos e entrevistamos no início do projeto, já havia revelado suas crenças e práticas espirituais. Recentemente, citou Irmã Graça como sua mentora espiritual e inspiradora da Campanha Alimento pela Vida, que no mês de dezembro coletou mantimentos para a população carente do Iguape, reunindo várias pessoas num grande encontro cultural-beneficente em Santiago.

A capoeira

"Capoeira é vida, é lazer, é dança, é arte, é amor, é cultura, é alegria, é tristeza. Capoeira pra mim é tudo, é nada. Por que tudo e nada?
Porque desde quando a gente se interessa por uma coisa, tem aquele objetivo de aprender. Esforço, força de vontade.
Capoeira é compartilhar com os amigos, com os pais, com os irmãos dentro de casa. Nunca usar drogas, jamais.
Capoerista foi discriminado. Muitas vezes, andava pela rua e passava um branco e dizia ' ali ó, coisa de negro'.
Eles pensam que estão humilhando a gente, mas não.
Só faz lembrar que a gente veio do passado, um povo muito sofrido,
mas vivido por dentro. Como a gente sofria no chicote do feitor ".
Ediney, Grupo Capoarte









Em Santiago existem dois grupos de capoeira. O Capoarte, do Mestre Curió, e o Grupo Raízes, do Mestre Joel. Não existia nenhum grupo de capoeira no vale até Mestre Curió, prof. Elenaldo, aparecer e iniciar o trabalho com os jovens. Depois de um tempo, ele montou o grupo mas não pode ficar em Santiago. Os alunos não podiam pagar e ele foi para Maragojipe, já que não tinha como sobreviver, sem ganhar para dar aulas. Os alunos, que ficaram no Iguape, muitas vezes vão de canoa, remando durante seis horas para encontrar o Mestre, treinar e brincar com os amigos de Maragojipe. Muitas pessoas falaram mal de Curió, quando ele deixou Santiago. Sobre essa questão, Edney declarou que "capoeirista de alma não fala mal de outro capoeirista, apenas treina e mostra bonito o que aprendeu com seu professor" - assunto encerrado. Durante a nossa conversa, Ediney ressaltou a importância da força de vontade e da determinação para aprender e evoluir dentro da capoeira, falou dos cordões, o que significa cada cor, e quais são os graus que um copoeirista deve alcançar para obter o título de mestre e, consequentemente, o cordão branco. Também falou sobre a importância de ensinar a capoeira para as crianças como uma arte da união, que fortalece o grupo, reconhecendo sua cultura e identidade. Para ele "quem está ensinando, aprende mais do que quem está aprendendo". Nós concordamos que a riqueza desse processo é a possibilidade de troca, de ensinar-aprendendo e aprender-ensinando. E é essa certeza que nos move nas terras do vale do Iguape.
No momento, o Grupo Capoarte enfrenta problemas com a falta de espaço para treinar em Santiago. Eles treinavam perto da chaminé, depois foram para o Centro Comunitário, mas tiveram que sair de lá. Edney, atualmente, ensina capoeira para um grupo com 23 alunos em São Francisco do Paraguaçu, nos disse que cobrava uma mensalidade de três reais de cada um, mas como nem todos podiam pagar, agora, ele tem orgulho de dar aula de graça. Muitas vezes vai a pé até São Francisco para encontrar seus alunos, que, segundo ele, são parte de sua família.
Quanto à pesca, percebemos uma grande clareza sobre o que significa essa atividade, a importância que tem na sua vida e, consequentemente, na vida de toda a comunidade.
"Pescar em tempo de festa? Festa pra mim não me dá comida, não me dá roupa, não me dá alimento nenhum e pescaria me dá isso tudo. Fazer o quê aqui, se não for pescar?"

O Futebol
"Acabou eleição, acabou campeonato..."
Com o objetivo de levantar informações sobre o futebol no Vale do Iguape, resolvemos entrevistar lideranças comunitárias, em especial os líderes dos vários times de futebol. Com uma listinha nas mãos, partimos ao encontro do pessoal:
O primeiro entrevistado foi Edson, presidente do Vasco e membro da Liga Esportiva. Como ele já estava a par de determinados pontos, decidimos passar ao próximo.
Encontramos logo depois um outro Edson, este técnico do time do Caonge, e levamos um papo rápido. O time reúne jogadores (atletas, como eles gostam de falar!) do Dendê, Calembá e Ponte, além do próprio Caonge que tem um ano de fundado e de vinculação à liga, apesar de já existir informalmente antes. O presidente do clube é Carlos Augusto. Edson é técnico desde antes da fundação. Trabalha na roça, além de pescar. O time é composto por 38 atletas, em sua maioria homens já pais de família, que trabalham nas roças de dendê ou banana.
Valnei Balbino (Tapó), presidente do Santos. Indiscretamente o interrompemos quando assistia a uma partida de futebol pela televisão. Relutou bastante em deixar seu interessante afazer. Mas, vindo conversar conosco, se empolgou tanto que até esqueceu a partida... Conforme esclareceu, o time que preside desde a fundação tem dois anos e tem em média 25 jogadores, mais ou menos 15 deles residentes no Iguape. Os desportistas estão em média na faixa dos 22 anos, chegando alguns a 33. A maioria deles não estuda mais e vive da pesca e uns outros poucos fazem pequenos serviços para garantir renda. Nesse ponto, manifestou seu desejo em que se instalasse uma fábrica no Iguape, a fim de suprir a demanda por emprego. Mas, depois reconheceu que a "fábrica" que eles têm por lá é a pesca. E, para melhorar a produção, acha que um criatório não daria certo, pois as pessoas não respeitariam o tempo de pesca. Parece ter algum ranço com a diretoria da associação.
Romoaldo (Moardo), presidente do Internacional. É o segundo time mais velho de lá, apenas perdendo em idade para o Vasco, que foi criado em 1959. O time surgiu com o apoio da política-partidária e denominava-se Ipiranga. Nesse período ele já fazia parte do clube, mas não era o presidente. É pedreiro e pintor, mas a pesca é o que lhe sustenta, assim como aos demais jogadores. Também como o outro presidente, disse que a pesca é a "fábrica" que eles têm. Os atletas trabalham em outras localidades, residindo no Iguape apenas uns seis. Estão na faixa etária variada, sendo a maioria já adultos com aproximadamente 40 anos.
Francisco (Tico), presidente do Flamenguinho. Com três anos de fundado o clube tem, aproximadamente, 22 jogadores, sendo 16 moradores locais. A maioria são jovens entre 16 e 17 anos e freqüentam a escola. Ele também é pescador e, assim com os outros, insistiu na analogia da pesca com a "fábrica" ou "firma" do lugar. Falou bastante sobre o sistema de funcionamento da liga e da manutenção dos times, além do "apoio" político que por vezes recebem. Manifestou diversas insatisfações nesse sentido.
Xibeu (Roberto), presidente interino do União. Este é um time da divisão de base - existem alguns outros com os quais não entramos em contato - onde cerca de 22 meninos, estudantes entre 9 e 16 anos, participam. Quatro deles moram em Caonge e em Dendê. O clube foi fundado há dois anos e meio por um amigo seu, que lhe passou a direção faz quatro meses. Ele tem um vasto currículo nos times da região, atuando nas mais diversas posições, sendo bastante requisitado. Ele se mostrou uma pessoa bastante esperta e ligada nas propostas de trabalho integrado. Em meio a conversa, já disparou algumas idéias de integração, inclusive uma grande reunião com lideranças para discussão de propostas e a criação de uma horta comunitária, gerenciada e trabalhada pelos atletas para os times arrecadarem fundos. Ele é pedreiro, trabalha na roça e pesca, além de fazer pequenos serviços de pintura, eletricidade etc.
Zé Dias, presidente da Associação Desportiva Iguapense (fundada em 1998). Nossa mais recente entrevista com os líderes dos times de futebol foi realizada com Zé Dias, aquele que nos ajudou com a divulgação do evento "Dia da Biblioteca em Iguape". A conversa foi longa. Discutimos sobre as condições de vida dos moradores de Santiago; o possível surto de dengue na comunidade; o problema como transporte escolar entre outros assuntos - Zé Dias, a todo instante, demonstrava sua preocupação com a comunidade e sua vontade de realizar algo para a melhoria da qualidade de vida de seus conterrâneos. Na mais recente reunião na associação, o seguinte tema inscrito num pequeno quadro foi discutido: "Como estou vendo o Iguape?". Está tentando juntamente com os outros participantes da Associação Desportiva Iguapense realizar ações sociais ao lado das atividades desportivas propostas pela associação. Tratando, especificamente, das atividades relacionadas com o futebol, notamos que essa associação mantêm um minucioso registro em fichas individuais de todos os participantes, realiza duas reuniões mensais e cobra a cada associado a quantia de R$ 1,50 para as despesas com o aluguel do espaço, medicamentos entre outros gastos. Comentou sobre a desarticulação e extinção da liga de futebol por falta de organização e compromisso. Zé Dias disse que não é, e não quer ser político e que a associação nunca aceitou ajuda financeira de candidato algum. Sente que todos os representantes dessa associação têm o direito de cobrar como cidadãos ambulância, transporte escolar e melhorias para a estrada, independente de qualquer relação com políticos - e é isso que irão fazer em Cachoeira numa audiência com o prefeito. Zé Dias lamenta ter que deixar o Iguape e teme que o trabalho iniciado quando assumiu a diretoria da associação não tenha continuidade - em breve ele voltará para Salvador.
Sobre a organização mais geral dos times, os representantes contaram que "quem sustenta nós, somos nós mesmos", ou seja, os jogadores filiados pagam taxas quinzenais para sustentar o clube, que variam entre R$ 1,50 a 4,00 reais, de acordo com o time e o período - quando há campeonato, a quantia tende a aumentar. Os campeonatos são organizados contando com os times da região e não é necessário muito: a contratação de técnicos - os presidentes de alguns times de lá mesmo ou de localidades próximas, quando há jogos mais importantes - organização de datas, tabelas etc. Porém falta envolvimento e união dos grupos. Este ano ainda não houve campeonato, apenas, "babas organizados" pois como argumentam os presidentes da liga, não houve patrocínio. Segundo relato de um dos presidentes, "acabou eleição, acabou campeonato". O primeiro campeonato foi patrocinado por um particular e o do ano passado foi realizado com o apoio de candidatos. Alguns dos representantes fizeram críticas à atuação da liga, acusando os diretores de desviar o dinheiro que seria destinado a ajudar os times.
Quanto aos representantes de outros times não contatados, aí vai uma outra listinha:
Ø Aloísio: Meninos de Rua
Ø Galdino: Opalma
E mais os da divisão de base:
Ø Palmeiras
Ø União
Ø São Félix
Ø Renovação
Ø Bahia

Lendas e contos

Dona Dodô relatou um fato ocorrido no dia da Festa de Santiago. Boça, o sobrinho de Inah, apostou com os meninos que iria descer pela janela da Torre da Igreja. Ele foi descendo na mesma hora que a procissão estava saindo da igreja com a imagem de Santiago, mas as pessoas não o viram, até que a coroa de Santiago caiu e todos notaram o que estava acontecendo. Aí, o menino começou a gritar e ficou preso por uma casca de ostra. Todos ficaram olhando, alguns homens pegaram um pano de barco e ficaram esperando o menino cair. O marido dela, José, ouviu os gritos do menino e saiu correndo, chegou lá, subiu na torre, se enganchou na janela e disse: ''Por Santiago você não vai cair!'' E deu a mão ao menino, ele foi se aprumando na janela e pronto, trouxe o menino para dentro. Quando eles desceram da torre, as pessoas que estavam embaixo na procissão mandaram que o menino passasse embaixo do andor de Santiago e fosse na frente da procissão.
Ouvimos sobre a Biatantã em São Francisco, mas suspeitamos que tal lenda pertença ao folclore da região do Recôncavo como um todo. A Biatantã é identificada como um ser estranho e assombrado, talvez uma alma de mulher. É representada, inicialmente, por uma esfera luminosa e minúscula que acaba se tornando uma enorme bola de fogo. Aparece para as pessoas que caminham sozinhas na mata, à noite, e fulmina todos aqueles que tentam olhar de perto sua refulgência. Quando duas dessas bolas de fogo aparecem num mesmo espaço na mata é sinal de que uma luta entre almas de ex-comadres está sendo travada, como numa revanche. Assim como em Santiago, também ouvimos histórias de um certo homem invisível além de outras lendas da região.

O poço dos milagres

O Caminho de Santiago é um caminho de areia pelo meio do manguezal que vai até a Ilha do Capim, sem que a pessoa molhe os pés. No meio dessa ilha tem o Poço dos Milagres de Santiago, que hoje em dia está seco, mas onde várias pessoas alcançaram várias graças.

''Abra-te campo formoso...''

''Há mais coisas entre seis mil quiabos do que pensa a nossa vã Academia''
Logo que optamos por retomar as atividades em campo, decidimos intensificar os laços com as localidades rurais, distantes dos distritos de Santiago e São Francisco por barreiras, à primeira vista, intransponíveis. Fomos de kombi até onde foi possível. Depois, sentimos nos pés tudo aquilo por que passavam os moradores de Caonge, Calembá, Dendê e outras. Caminhamos mais ou menos 2 quilômetros, com uma via totalmente ''esburacada'', assemelhando-se a um palco de rali.
Finalmente, chegamos. Entre seis mil quiabos, quantidade necessária para o caruru de dona Juvany (Caonge), encontramos mais do que o tempero do caruru.
Entrevistamos, na realidade, a irmã de Ananias. Ela é uma mulher de 49 anos, com dez filhos - quando ela começou a ter filhos, veio logo uma ''barriga de dois'' (duas meninas), depois perdeu dois meninos -; é dinâmica, trabalhadora, decidida. Suas atividades envolvem a mariscagem, a plantação de mandioca, banana, rosas e laranjas. A respeito da mandioca, destacou o excesso em suas terras e apontou um ponto negativo do produto: ''A farinha (…) está muito barata. Se ocupa muita gente e não dá resultado''. Sua casa de farinha é utilizada pelas pessoas que pagam com a mão-de-obra. Por exemplo, se a pessoa fizer uma quarta de farinha, paga 3 litros.
No decorrer da conversa, detalhou acerca de uma das vertentes da religião negra. A Umbanda está na família há muito tempo. Seu pai, já falecido, era famoso porque "batia couro" (referência aos cultos de Candomblé) sete dias e sete noites. Foi perseguido pela polícia na época em que não era permitido o culto de religiões de origem africana. Ainda hoje sua fama permanece e existem várias estórias - ou lendas - a seu respeito, como a de ter feito um barco correr em terra firme. No início, tinha medo e não acreditava, depois acostumou e passou a acreditar devido a coisas da vida.
" Esse negócio é tão sério, tão sério que é melhor quem tá dentro, ficar e quem tá fora, não entrar. Não que faça medo, é que é uma coisa que você tem que temer, tem que obedecer as coisas, senão é pior para você, e, se você tem essas coisas, é porque tem herança de alguém."
Como tínhamos conhecimento de seu caruru - com cana, feijão fradinho, feijão preto, banana da terra, acarajé, abará etc. Relatou que sua mãe tinha feito uma promessa, ainda grávida dela, de seguir mantendo os dias do caruru de Cosme e Damião. Assim, foi convencida, não muito facilmente, a continuar com a tradição. Justificou a hesitação na continuidade por causa das sucessivas mortes que assolavam Caonge, inclusive da pessoa que sempre rezou.
Os preparativos iniciam-se na véspera. O caruru acontece no sábado. No domingo, o povo ainda samba, e, pela tarde, é a festa de São Cosme e Crispina. Nessa festa, há duas mesas de doces, uma para cada santo. O caruru, primeiro, é dividido para sete meninos e cinco meninas, sendo que estas últimas representam a família de Crispina -com cinco filhas. Naquele momento, fomos convidados para o do dia 09 de dezembro.
Seus carurus mobilizam muita gente, especialmente mulheres iniciadas. Tivemos oportunidade de vivenciar essa experiência, durante todo o dia. Pela manhã, assistimos o corte de 6000 quiabos por 35 mulheres. Todas iam chegando com suas facas nas mãos. O interessante é que as jovens ficavam de um lado e senhoras de outro; homens, ao que tudo indicava, não cortavam. O trabalho mais pesado era destinado a eles: cortavam coco, rachavam lenha, pilavam camarão, castanha etc.


Já nesse ambiente, o primeiro cântico foi tirado pela dona da casa para purificar o lugar, ao mesmo tempo que a incensava:
"Louvado seja oh, meu Deus, louvado seja Nossa Senhora no seu altar, incensando esta casa santa, para os maus saírem e a felicidade entrar".
Foi o ponto de partida para que todas começassem a cortar os quiabos: uma quantia para Iansã e outra para Cosme e Damião, Crispina e Crispim…
"Quando chego no terreiro ou Maria, louve a Deus primeiro, ou Maria graças a Deus ora meu Deus louvado seja a Deus Ora meu Deus.
Três pedras dentro dessa aldeia, uma maior outra menor, a mais pequena que nos alumeia, três pedras dentro dessa aldeia.
Eu vinha de um lado, eu vinha do outro, pedrinha miudinha dentro dessa aldeia quem pede mais, é Deus do céu, a luz que nos alumeia."
Homenagearam aos orixás, citando-os um a um, nesse último cântico.
Terminado o corte, o tempero estava todo pilado. Era hora das muitas panelas irem para o fogo. Era, sobretudo, um dia muito especial. Vizinhos se dedicavam na preparação. Algumas mulheres iam defumar folhas verdes dos galhos para, mais tarde, forrar o chão como se fosse um tapete. Víamos tudo como uma novidade. Como podíamos ter uma postura de alheamento ao tempo dos relógios? Eram outras temporalidades…
Retornamos à noite. A festa principiou com uma ladainha:
"Bendito seja louvado São Cosme, São Damião,
bendito seja louvado seja a Virgem da Conceição
que também seja louvado, São Cosme, São Damião.
Quando nesta casa entrei, fui fazendo oração
somente pra adorar São Cosme e São Damião."

Depois de terminada a ladainha, começou um cântico para São Cosme e Damião:
" Quem não beijou, venha beijar, Cosme e Damião é que está no altar
Já pedi não peço mais, quem quiser me dá, me dê, já pedi não peço mais
Dosdoi de ouro vê cá, quem tá dormindo acorda, quem tá dormindo é Deú,
levanta Deú pra comer caruru"

Foi uma experiência ímpar. Realmente, ao sairmos às duas da madrugada, ficamos com a impressão de que o caruru não obedecera os nossos valores de temporalidade. E, nitidamente, a visão e o comportamento em relação ao tempo eram outros. Estávamos no tempo da religiosidade afro-brasileira

"Quando eu vinha de lá do alto
do alto daquela serra
eu passava pelo caminho
do meu lajedo de pedra
ajoelhei-ma à beira do rio
acabei de vencer a serra"


Mudou a perspectiva, durante o longo ''bate-papo'' que tivemos. Foi a vez de dizer que já tinha se arriscado na política. Candidata a vereadora acidentalmente - um amigo de seu marido havia traído o povo e fôra preso -, ela tentou se eleger para tirá-lo da Câmara. Não ganhou por obra dos Orixás que não permitiam a raiva, rancor, ressentimento etc.
Fomos até a unidade escolar local, construída por ela que contribuiu com uma parte do material. Professora há 20, ela comanda uma classe multisseriada (alunos de 3ª e 4ª séries primárias) junto com sua filha, também professora (alunos de alfabetização e 1ª série). Dividem a mesma sala da única escola da região: a Escola Cosme e Damião. Uma das maneiras encontradas para conciliar os níveis de aprendizado foi a divisão de horários: as aulas da 3ª série, por exemplo, são das 13 às 15 horas. Além do ensino regular, contou-nos que faz trabalhos manuais com flores, bordados, mobília de caixas de fósforos etc.
Tivemos a certeza de que Juvany era (e ainda é) uma referência fundamental para qualquer desenrolar de atividades. Trata-se, pois, de uma das pessoas que mais incentivou a Companhia de Dança Afro Vale do Iguape e, também, uma liderança religiosa na região de Caonge, Dendê e Calembá.
Mas ela não era a única de iniciativa, na região. Uma de suas "auxiliares" era dona Tonha, parteira do povoado de Dendê, já falecida. Em visita e esta pequena localidade, quase não encontramos as pessoas para entrevistá-las: alguns estavam na pesca e outros em Salvador no enterro dessa parteira, certamente alguém que guardava um certo carisma.
Lá, existem cerca de 13 casas e todos os moradores são parentes. Ninguém sabe dizer ao certo quem é o dono das terras em que vivem. Sabe-se que foi herança de seus antepassados que já nasceram ali. Porém, depoimentos esporádicos afirmam que terra pertencia a Seu Naílton, como relatou a jovem senhora, D. Valdinete, 27 anos, 3 filhos. A única pessoa que poderia nos confirmar algo mais seria o próprio seu Nailton. Entretanto, ao questioná-lo acerca desse dado, ficamos sabendo que ele era filho do suposto ''dono das terras''. Para surpresa nossa, ele relatou que as terras tinham muitos donos…
Por sua vez, a dona da educação das crianças do Dendê era Juvany, que ensinava no "colégio do Caonge". Esta buscava prestar solidariedade mesmo em um lugar onde as pessoas tinham uma vida sofrida.
A sobrevivência, basicamente, vem da mariscagem. Os mariscos, coletados e fervidos são conservados na lama, em lugar fresco. Plantam aipim, mandioca e dendê. O azeite deste último é vendido a partir de R$ 0,50 (cinqüenta centavos) , chegando a R$ 2,00 ( dois reais ) em época de pouca oferta. O azeite da planta local é mais puro, fino e, portanto, melhor para o preparo de alimentos. Com o lucro, compram temperos, verduras e querosene.
A casa de farinha onde transformam a mandioca é de dona Adelaide. Por cada quarta ( medida) de farinha devem deixar oito litros da mesma.
Não há luz elétrica e em noites de lua os moradores ficam nas portas das casas conversando. São João e Primeiro do Ano são dias de festa e então tem samba .Quem o grita é seu Nilton que tem até um tamborim.

As mulheres paridas passam por cuidados especiais como: ficar sem mariscar por três ou quatro meses, comer galinha de quintal, não devem comer limão, etc. São também proibidas de banhar o recém-nascido antes de sete dias de vida. Em seu lugar, entra em ação o pai de imbigo: o pai cuida do bebê até seu umbigo cair. As mulheres mais velhas cuidam para que tudo corra bem: cozinham e orientam a nova mãe. Com um mês de parto, é feita a meladinha. É uma bebida feita à base de ervas como arruda e losna; cebola e cachaça entre outros ingredientes, servida num momento festivo, comemorando a vinda da criança ao mundo.
Dendê pareceu-nos ser uma remanescência quilombola. E o foi. Atualmente seus moradores demonstram biotipicamente que já se misturaram com moradores de outras regiões , como Santiago do Iguape e Acupe.
Já em Calembá, conforme depoimentos recolhidos, a qualidade de vida não se diferenciava muito das outras duas visitadas. Contudo, ''o dono daqui é Jaba'' - este estava ausente no local. Segundo, depoimentos escutados, ele não cobra nada pelo terreno, mas…
"Ele num deixou terra pra gente, num queria nem pra gente plantar, num queria bicho nenhum (…) mas se um animal da gente… quando eles corta cana, se um animal da gente - que a gente cria aqui tudo amarrado, na corda -, mas se ele corta cana (…) e um animal da gente escapulir e cortar, eles cobra (…) se num for buscar, eles morre [os animais]".
A terra, não ficou bem claro, parece que foi comprada pelo tal de seu Jaba, que a contragosto, permitiu que eles morassem em Calembá - antigo engenho. No entanto, impôs algumas condições. Por exemplo, os animais devem ser criados presos, como contou-nos as entrevistadas. Se, por acaso, ele encontrar um animal solto, onde trabalham com cana, este é retido e só pode ser recuperado pelo dono com uma quantia. O depoimento seguinte exibe essas dificuldades:
"Se a gente num tiver aquele dinheiro [50 reais por cabeça], quer dizer que os animal fica lá (…) ou então fica pra eles. (…) Tão levando lá pra baixo, eu não sei onde é, aí a gente não acha mais esses animal se escapulir".
Os demais pontos apontados foram os mesmos dos outros povoados: água, ''é um sufoco''; a sobrevivência ''é roça, é maré''; além da distância para um posto de saúde.
Politicamente, eles - Caonge, Calembá e Dendê -, segundo alguns depoimentos, sofreram com a iniciativa de um vereador que não recebeu apoio eleitoral deles e cortou a água para esses povoados. A previsão é de que haja corte, novamente, porque ele não foi eleito.
Em síntese, o que vivenciamos nessas localidades não foi suficiente para, realmente, estreitarmos os laços com os moradores dali. Faltou-nos intensificar as visitações. Iniciamos, mas aliviamos, aos poucos. Porém, a continuidade parece urgente, pois, caso contrário, teremos que estar sempre reiniciando o processo do princípio. Lideranças, já as temos - pelo menos algumas. Agora, é preciso detectar um número mais representativo, ou talvez, alcançar a escola de Caonge como filão para desenvolver atividades com os jovens.

Quem planta, não colhe!
Quem semeia vento, colhe tempestade!

Os assentados de Caimbongo são, em sua maioria, provenientes de uma divisão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, especificamente do assentamento Bela Vista, em Santo Amaro da Purificação.
São muitas as queixas ao MST: excesso de participação nas decisões do movimento, as longas caminhadas para Salvador, trabalhos excessivamente coletivos e até mesmo a falta de liberdade. Diante da dificuldade de adaptação a este tipo de organização, preferiram ocupar o assentamento de Caimbongo mesmo sem o cumprimento das promessas de benfeitorias do INCRA. Cada família recebeu do governo o equivalente a R$ 1.420,00 (mil quatrocentos e vinte reais) e sementes de feijão e milho. Porém, isso não foi suficiente para melhorar a qualidade de vida dos camponeses. Atualmente muitos trabalham fora do assentamento para sobreviver.


O acesso é dificílimo: a ladeira que liga Caimbongo a Santiago do Iguape é íngreme, sem asfalto e muito acidentada. Isto impossibilita o trânsito de automóveis ou o escoamento de uma possível produção. O assentamento não produz nada além da mandioca para a subsistência dos moradores. Com a farinha feita na casa de farinha de dona Mucinha de seu Mateus se alimentam e vendem ou trocam por outros produtos em Santiago, Acupe ou Saubara.
Para produzir precisam de outros recursos como melhoramento da estrada, apoio técnico e financeiro. A falta de apoio é a principal justificativa dos assentados para o estado de miséria que muitos deles se encontram. Mas, mesmo sem apoio nenhum, encontramos casos como o de seu José Vicente, 60 anos, e seu Albertino, 57.
O primeiro fez cursos na EBDA e é possível ver no seu terreno muitas plantas medicinais, abacaxi e verduras (plantadas em período de experiências). Sua roça é um imenso laboratório: troca farinha por feijão, galinha ou até mesmo um dia de serviço nas roças vizinhas.
Seu Albertino não é assentado. Trabalha para um que é feirante em Candeias em troca do pirão (assim ele chama a cesta básica que recebe). Chegou ao lugar em janeiro e na roça em que trabalha sozinho já se vê mandioca, mamão, aipim e temperos (especiarias). Como quase todo morador, caça na mata teiú, tatu e porco do mato.
Pobreza extrema, saúde prejudicada, falta de perspectiva são males que afetam a população daquele local. Mais prejudicadas ainda ficam as crianças, reclamam eles, que só agora foram contempladas com a construção do prédio escolar, que será entregue à prefeitura de Cachoeira. As aulas são ministradas pela esposa do líder do assentamento, mas quase sempre está fechada. Outras crianças estudam em Santiago, mas faltam muito, principalmente em época de chuva por causa do difícil acesso.
Além disso, devido a distância das habitações, alguns pais proibiam os filhos de freqüentar a escola. Daí, um projeto de centralização das residências para que, dentre outros benefícios mais gerais, as crianças pudessem estudar. Mas essa é uma reivindicação que parece difícil de alcançar, dada a situação atual do povoado.
O maior questionamento é com relação à sua liderança oficial, seu Vasconcelos. Indicado pelo INCRA, ele desperta medo e descrença entre os moradores que o reelegeram representante. As queixas são várias. Infelizmente não percebemos ainda nenhum indicativo de trabalho em grupo para a solução de problemas comuns. Nem mesmo a troca de serviços, prática comum em comunidades rurais, é bem vista por eles (dois ou três assentados o fazem). As pessoas são extremamente individualistas e tem medo de se expor no próprio assentamento. Mas enquanto eles não decidirem ser sujeitos da mudança, nada acontecerá de grandioso e benéfico para todos. Eis o desafio: como ser comuniversidade nesta conjuntura?
Desafio lançado, a certa altura do trabalho, quando nos demos conta de que qualquer outra postura nossa poderia reafirmar a prática paternalista - essência da "ajuda" que as pessoas com quem mantínhamos contato pediam - decidimos parar as idas até lá. Foi angustiante perceber que naquele momento não poderíamos mesmo levar os objetivos do projeto adiante em Caimbongo. Sim, eles precisavam de ajuda. Mas, primeiro, era preciso que, coletivamente, decidissem tomar alguma atitude - mesmo que fosse pedindo o tal apoio, que deveria ser uma iniciativa conjunta, pelo menos da maioria, e servir para todos.
Se detectar a falta de um senso de grupo nos fez não mais priorizar a subida até Caimbongo, isso não foi justificativa para o abandono total do trabalho. Em Salvador procuramos reestabelecer contato com os principais órgãos relacionados de alguma forma com o assentamento para saber, a nível institucional, qual era a real situação do lugar.

"Tudo o que foi falado de vir, não veio!"

Um dos capítulos da saga dos assentados na busca pela terra foi a filiação de alguns membros ao MLT, após desvinculação do grupo com o MST. Isso fez do Movimento de Luta pela Terra o movimento social mais próximo a Caimbongo. Ele seria, em tese, quem filiaria ideologicamente os assentados, além de fornecer apoio em suas causas e questões internas de gerenciamento e na negociação com agentes externos.
Por isso procuramos coletar dados sobre a atuação do MLT no assentamento. Numa das visitas à sede da instituição conseguimos contatar Lourival Gusmão que, haviam nos dito, seria um dos únicos dois homens que poderiam falar da questão Caimbongo. A conversa com este que era um dos coordenadores do órgão não foi muito longa, mas deu para absorver o modo de condução do MLT em relação aos assentamentos, incluindo também a organização do movimento e seu envolvimento político-partidário.
O Movimento de Luta pela Terra é um organismo não governamental que tem como bandeira a ocupação de terras, exigência por políticas governamentais de reorganização fundiária e a reforma agrária. A nível ideológico parece ter uma maior aproximação com a causa do PC do B, partido do qual recebe apoio - inclusive Gusmão é, a ele, filiado. Mas, afirmou que a ligação com tal partido não é mais especial que a mantida com outras organizações de fins semelhantes. Mantêm uma relação amena com a FETAG, porém com o INCRA, ultimamente, as negociações estão péssimas.
Um ponto recorrente na conversa foi o método agregador usado pelo grupo. Afirmou ser o MLT um movimento de massa e que não "tem esse negócio da carteirinha". Logo, não há a ligação institucional com esse partido - e não levantam sua bandeira, segundo ele. Além disso, congregam o apoio de quaisquer entidades que se dispuserem. Aqui na Bahia trabalham com a COOTEBA, sendo que algumas pessoas desse órgãos são militantes e outros não. No Pará, segundo exemplo dado pelo coordenador, eles são apoiados pela igreja, PC do B e PSB.
Um outro ponto na discussão foi a diferença com relação ao MST. Esta, para Gusmão, se dá especialmente devido a o que considerou uma tendência "exclusivista" do outro movimento. Para ele, o MLT quer construir a reforma agrária, não tem a pretensão de "dominar ninguém" - certamente faz uma alusão à rigidez organizacional do MST. O MLT está sendo divulgado pelo livro da UNESCO e com base numa pesquisa à nível nacional foi tido como o mais democrático.
O MLT desenvolve metodologias específicas para cada situação e as decisões são discutidas e tomadas coletivamente. Apesar disso, enfatizou que nem sempre têm sucesso com tal modo de trabalhar. Isso porque as decisões democráticas dependem do grau de organização do grupo com que se lida e do estágio no processo de posse da terra. A luta pode variar de ocupação mais tranqüilas, sem conflitos, ou haver muitas dificuldades e desavenças, o que torna o grupo desagregado.
Membros das lideranças dos assentamentos são militantes do movimento ou têm vinculação com a FETAG. Então eles fazem encontros para ajudar no gerenciamento do lugar e discutir questões de interesse - política partidária e eleitoral, política dos assentamentos, parcerias, relacionamento humano, como atuar com as prefeituras. Essa é a forma de apoiar os assentamentos.
Sobre o apoio técnico aos assentamentos disse que atualmente não há, mas antigamente tinha. Foi durante o período após o término do programa governamental de assistência técnica - época em que havia uma equipe de técnicos do MLT para cada 250 famílias de assentados de uma mesma região - que eles se aproximaram o máximo de Caimbongo.
Eles não têm mais base nenhuma naquela área de Cachoeira. Outrora a coordenação fazia visitas à Caimbongo. Mas já tem muito tempo que eles não vão lá. Ele mesmo não comparece no local há três anos, e demonstrou não fazer muita questão de ir.
Contrapondo com outra visita, à sede do MST, estabelecemos contato com Fábia, coordenadora da Secretaria Estadual do movimento, que nos deu algumas informações a mais sobre a organização do movimento, além de discutir algumas possíveis atuações no assentamento de Caimbongo. Ela afirmou que o assentamento não tem qualquer vínculo com o MST, e acha pouco provável que alguns dos assentados tenham vindo do movimento, mas sugeriu que procurássemos o diretor da regional de Santo Amaro para maiores esclarecimentos.
Com relação às questões que levantamos sobre as dificuldades de organização existentes em Caimbongo, como a falta de assembléias e impossibilidade de destituir a atual direção, Fábia concordou que nem o MST, nem nós poderíamos intervir na organização dos assentados, mas acha que alguns esclarecimentos poderiam ser dados, como: que para se votar numa assembléia, o pagamento da mensalidade não é obrigatória. Sugeriu também que participássemos de uma assembléia para possíveis orientações no sentido de solicitar uma intervenção do INCRA.
Também tivemos, nesse meio tempo, uma informação de que a Comissão de Justiça e Paz, CJP, estava tentando se envolver com a história deles. A partir daí, tornou-se de suma importância abrirmos esse novos espaços de diálogo com o órgão e apoiá-los no que fosse preciso.
A CJP, um afluente da Igreja Católica, se propôs a conduzir o processo, em linhas gerais, de organização coletiva para possíveis liberações de créditos que viessem trazer melhorias os assentados da região. O órgão citado seria um facilitador dos diálogos entre INCRA e Caimbongo.
O primeiro passo foi uma reunião envolvendo Adriana e Hemilson (CJP), Vital (INCRA) e os próprios assentados para discussão do crédito de habitação. O representante do INCRA determinou os dias e horários para assinatura do contrato - quinta à tarde ou sexta pela manhã. Caso se ausentassem, perderiam os direitos de crédito e os ''retardatários'' deveriam conversar com ele depois, em Salvador. Sobre a estrada, Vital lembrou que há uma dependência de Brasília (descentralização de recursos). Também destacou a parceria com a CDA além de outros para angariar recursos financeiros e técnicos visando iniciar a obra. Porém estava prevista, em orçamento, para 2001.


Acerca da habitação, ele disse que o INCRA não tem obrigatoriedade de fornecer técnicos para realizar os projetos de Custeio e Investimento, R$3.000 e R$9.000 respectivamente. Contudo, o prazo após a assinatura do contrato está condicionado ao aval do grupo assentado e a posterior comunicação e autorização do INCRA junto à Caixa Econômica. Depois da autorização reservada ao órgão, o prazo para conclusão das construções é de 120 dias.
A tramitação exposta pelos integrantes da reunião foi bem clara: o Projeto Habitação deve ser apresentado e concluído para que se consiga a liberação de outros recursos (Investimento) sob pena de perda do recurso (habitação), caso o Projeto Investimento seja apresentado primeiro. O único que independe da tramitação de outros é o Projeto Custeio.
O valor liberado para construção das casas é de R$2.125 sendo R$375, destinados ao pagamento de operários envolvidos na construção de cada unidade habitacional, totalizando R$2.500 por família. Os recursos habitação (construção e mão-de-obra) serão pagos via Caixa Econômica, diretamente ao operário e casa de construção, devidamente credenciada, após o término das 68 construções. O INCRA orienta para que as casas sejam construídas em agrovilas, pois facilita a instalação da infra-estrutura (água, luz, escola, transporte) no local.
O segundo passo foi a reunião propriamente dita da assinatura do contrato, que contou com uma representante do INCRA e ocorreu na Pousada Tio Pelet, em Santiago do Iguape - embora a própria representante do órgão não soubesse nem onde estava. Entre acordos e desacordos, ela explicou o processo e ressaltou a não obrigatoriedade da filiação ao crédito proposto pela Caixa Econômica. Alguns reclamaram do acesso à vila, do pagamento posterior de quem fosse trabalhar na obra de construção das casas, do pouco dinheiro liberado e outras controvérsias. Houve até quem reclamasse da reforma agrária e das lideranças:
" A reforma agrária tá sendo feita de uma maneira muito inadequada, entendeu? Tá faltando apoio ao trabalhador (…) Essas lideranças atrapalham mais do que constrói alguma coisa (…) porque essas lideranças, elas só olha mais o seu lado particular."
Um dos assentados, também, não deixou de fornecer lições de convivência, destacando que ''a gente tenta se unir, entendeu, porque não é fácil conviver com pessoas diferentes, comportamentos diferentes…''.
O terceiro e último passo já aspira por um estágio mais avançado: ''é ajudar vocês para a autonomia'', palavras de Hemilson. Na última reunião com o CJP, Adriana também foi firme: ''essa reunião é de vocês''. Daí, a luta deles para que as pessoas se comprometam em participar de eventos que envolvam não só os interesses de Caimbongo, mas também outros assentamentos filiados a outros órgãos. Sobre as atividades do SETRAS, que atua em outras regiões da Bahia com uma organização coletiva invejável, foi sugerido:
" Agora, nós também tamos pensando, não tem data ainda, também tamos pensando em realizar um encontro dos assentamentos do Recôncavo (…) um documento assinado por esse povo todo [ CPT, CJP etc.] óbvio que ele vai ter mais força do que sendo um documento assinado por Seu Joaquim dos Anzóis etc. etc. e etc., tá?"
O objetivo de ''encostar'' nas mobilizações do SETRAS é obter maior pressão nas reivindicações, já que a visita ao INCRA se efetiva em massa e os objetivos de cada assentamento são redigidos em uma pauta única. Como o órgão planeja apara o dia 5 de abril esse tipo de ação, a proposta da CJP é que os moradores de Caimbongo reunam-se e discutam, pelo menos, a inclusão de uma necessidade urgente para buscar soluções.
A última reunião foi muito tumultuada. Em função de uma atitude arbitraria do líder da ''associação'', a afirmação inevitável emergiu: ''não é a diretoria que é a associação, são todos (…) o direito é de todos''. De fato, já sabíamos das dificuldades que a CJP iria encontrar. Afinal, nós tínhamos passado por isso, antes.
Certamente que a atuação de ambos os grupos é diferenciada; nós estamos num processo de convivência no Iguape, que envolve outras áreas e temáticas no município e eles, a CJP, tem como prioridade a questão agrária, fato que direciona maior atenção e mais familiaridade com as questões vivenciadas no assentamento. Entretanto, os objetivos são coincidentes, pois ambas as instituições almejam construir uma comunidade ativa, com espírito coletivo e autônoma. Se essas atuações despertarem uma consciência coletiva nos membros do assentamento, talvez abra-se novos espaços de construção de novos territórios, envolvendo a universidade e a comunidade, irredutíveis a uma das duas categorias.


A Educação
" Santiago e sua resistência(...) Santiago hoje para mim, amanhã para ti, terra de onde só para Deus um dia eu irei partir"
Profª. Maricélia
O caso da biblioteca no Iguape

Dada a retomada efetiva das atividades do Projeto Paraguaçu dentro do Programa UFBA em Campo III, a qual tivera como marco a realização de uma reunião com todos integrantes do grupo, inclusive com os "novos-velhos" membros da comunidade, conforme já fora citado anteriormente. Ficaram decididas algumas iniciativas a serem desenvolvidas, dentre elas, uma aproximação com as escolas do Iguape, tentando estabelecer uma dinâmica nova de ações tendo como eixo fundamental a interpenetração entre a dinâmica cultural do lugar e as atividades educativas desenvolvidas nas escolas.
A partir do amadurecimento do processo de convivência e de familiarização com a história e com os moradores locais, pretendíamos intensificar a rede de relações outrora construída, reatando os seus nós e tentando tecer novos fios que sustentassem a experimentação do que até então tínhamos apenas no campo teórico, o entre-lugar, um território novo, a ser construído coletivamente privilegiando a horizontalidade das relações e a multiplicidade de saberes e de aprendizagens.
No nosso horizonte, tínhamos (e ainda temos) a construção conjunta de uma "comuniscola", autônoma e auto-organizada, embasada e fortalecida pela cultura de sua população. Uma escola flutuante, que sobrenadando na dinâmica do local conseguiria absorver em seu cotidiano a conexão de diversos saberes, desenvolvendo novas abordagens e formas de aprendizagem.
Neste sentido, iniciamos um processo de aproximação com professores das escolas: Rural de Santiago do Iguape ( que atende 320 de crianças de 1ª até 4ª série) e Estadual Heraldo Tinoco (que atende da 5ª até a 8ª série, estudantes do próprio Iguape e de localidades próximas).
O primeiro contato aconteceu na nossa viagem de retomada das atividades do projeto em campo, nos dias 12 a 15 de outubro. Naquela ocasião conhecemos Maricélia, uma professora da Escola Rural que se mostrou conhecedora da história da região, muito interessada em desenvolver formas de aprendizagem que envolvessem o contexto de vida dos moradores da comunidade. Durante a conversa, Maricélia nos contou um pouco sobre os personagens principais que participaram da formação do povoado, dos antigos engenhos, das construções religiosas e das festas tradicionais.


A professora falou sobre sua prática educativa em sua sala de aula, onde realiza um trabalho de incentivo ao conhecimento dos diversos elementos que compõem a história e cultura local. Esta conversa nos estimulou ainda mais a estabelecer uma dinâmica de convivência com professores e estudantes.
Na viagem seguinte, fomos diretamente às escolas Rural de Santiago e Estadual Heraldo Tinoco, tínhamos o intuito de intensificar um convívio com os professores que coincidentemente, não encontramos (a maioria), pois estavam participando em Cachoeira de uma reunião de AC (Atividade Complementar).
Na Escola Rural de Santiago conhecemos Tiago, Berenice e uma outra professora. Eles apresentaram muitas propostas interessantes e se mostraram motivados a realizar atividades em conjunto. Falaram da falta de um trabalho integrado entre os professores (apenas alguns deles realizam atividades de troca de experiências, que são muito proveitosas e ricas), da dificuldade de evitar a evasão de algumas crianças que precisam trabalhar para auxiliar a renda familiar, e várias outras situações que dificultam a prática educativa.
Percebemos com este primeiro contato que o trabalho com as escolas seria um território fértil para se desenvolver uma coletividade, pois, identificamos, a partir das idéias sugeridas, o interesse de alguns professores em desenvolver uma dinâmica curricular mais próxima do contexto local.
Nesta mesma viagem conversamos com a professora Solange, na época, diretora substituta da escola Heraldo Tinoco. Esta nos falou sobre a grande evasão ocorrida naquele período, devido a suspensão feita pela prefeitura do transporte coletivo gratuito aos estudantes, e também da superlotação das salas e da falta de professores licenciados que pudessem lecionar na região.
A profª. Solange propôs a realização de uma reunião com todos os professores das escolas da comunidade. Nesta reunião poderíamos apresentar e ampliar a discussão sobre a filosofia do nosso projeto e o desenvolvimento que o mesmo vem tendo na comunidade, assim, a depender do interesse dos professores, iniciaríamos, a partir daquele momento, um trabalho de ações coletivas conectadas às propostas sugeridas pelos próprios professores.
Conhecemos também o trabalho realizado pela professora Iaci em sala de aula, seu interesse pelo desenvolvimento afetivo-cultural de seus alunos e suas práticas, utilizando a música, o teatro, enfim, as artes em geral. Ela falou com muito entusiasmo sobre a vitória de um dos seus alunos num torneio de argolinha, enfatizando o quanto aquele aluno se interessava por esse tipo de competição e de como foi importante para ele conquistar aquela vitória, depois de desacreditado pelos colegas. Pediu para que ele relatasse tal vivência em sala de aula, numa prática de expressão oral. O violão sempre foi o companheiro de Iaci em sua sala de aula. Mas no passado ela foi muito criticada pelos professores que não acreditavam em uma prática pedagógica auxiliada pelas artes. Agora, orgulhosa, diz que todos estão procurando fazer o que durante muito tempo ela vem realizando em classe. Também fica muito feliz ao encontrar seus ex-alunos que, ainda hoje, continuam envolvidos com as artes.
Em novembro, tivemos a primeira reunião com os professores, na qual contamos apenas com a presença dos que lecionam na escola Estadual Heraldo Tinoco, que em sua maioria residem em Cachoeira. Esta reunião foi caracterizada por um grande mal entendido e por um descompasso de discursos. Por um lado, explicitávamos a filosofia e os interesses do projeto com relação à comunidade e às escolas, os quais estão embasados na idéia de uma composição coletiva e autônoma, de um novo território no qual seria estabelecido uma rede de relações de múltiplas e mútuas aprendizagens; a proposta era construção de uma "comuniscola", ou seja, uma interpenetração da história, da cultura, das atividades do cotidiano, enfim, de toda a dinâmica do local na dinâmica da escola.
O que percebemos, entretanto, foi a rigidez da estrutura escolar imposta pelas políticas oficiais, sedimentada pelos próprios profissionais envolvidos com educação.
A pluralidade e o saber popular da comunidade parecem distantes da vida escolar, que abstrai a interação comunidade-escola. Tais aspectos, se considerados na dinâmica da escola, possibilitaria uma aprendizagem, inclusive dos conteúdos curriculares em diversos espaços, com diversificadas formas e linguagens. Para tanto, a instituição deveria "ouvir" a comunidade e seus educandos, e se nutrir de sua realidade histórica, cultural, social, política e econômica.
Esperavam que nós apresentássemos um projeto pronto de atividades, o que contraria completamente a nossa filosofia de trabalho. Queremos construir com a comunidade e com a escola, e não para a comunidade ou para a escola. Mostraram-se apáticos a nossa proposta e utilizaram-se do discurso da pressão exercida pelas políticas oficiais no que se refere ao planejamento curricular "obrigatório" as escolas.
Tivemos conhecimento, após a reunião, que os professores que moram no Iguape não foram convidados, fato que por sinal, causou um grande constrangimento, pois, os mesmo pensaram que nós, da universidade, não queríamos a participação deles.
Desta forma, sentimos a necessidade em entrar em contato com todos eles a fim de explicar a situação ocorrida e reaver o equívoco. Durante todo dia seguinte passamos de casa em casa conversando com professores e algumas lideranças de grupos artísticos de Santiago, convidando-os para uma nova reunião que ocorreu na noite do mesmo dia.
Esta sim, foi uma grande reunião. Um aspecto interessante foi a proximidade das idéias entre eles, coisa que, sem dúvida viria facilitar o trabalho integrado. Uns pediam por uma maior inserção artística na dinâmica de sala de aula, outros na importância do conhecimento da história local, mas de maneira unânime, todos se mostraram convictos da necessidade de mudanças na forma de administrar o ensino. Mostraram o descontentamento com uma estrutura hierarquizada e vertical que impõe um pacote de conhecimentos descontextualizados, desinteressantes. O que ocorreu foi fruto da convergência muito forte de idéias e interesses numa mesma direção, manifestadas pelos docentes.
Desde que iniciamos um contato mais próximo com os professores de Santiago até esta reunião, constatamos que dentre todas as idéias expostas uma parecia ser unanimidade. A idéia de formar uma biblioteca na comunidade, se destacou como maior desejo deste grupo, o que nos levou a direcionar as ações neste sentido. Um aspecto que também influenciou para que elegêssemos a proposta da construção de uma biblioteca como primeira ação conjunta, foi o término do ano letivo nas escolas que impossibilitava desenvolvermos outro tipo de atividade como a "Feira de Conhecimentos", muito citada também em todas as conversas, fechando o período de aulas.
Na reunião interna do grupo, após o primeiro grande encontro com os professores, concluímos que iniciar um processo de difusão da idéia de construção (não no sentido estrito) da biblioteca no Iguape era inteiramente compatível com a nossa proposta e também viável de ser realizada mesmo em um período de férias escolares na região.
Voltamos ao Iguape já com a intenção de reunir mais uma vez os professores e iniciarmos uma fase de elaboração de um evento que simbolizasse o processo de concretização da idéia. Nossa expectativa era, através de um evento, envolvendo oficinas de artes, apresentações dos grupos artísticos do local, chamar a atenção do maior número possível de pessoas para a importância de uma biblioteca na vivência da comunidade.
A partir desta decisão, em todas as viagens seguintes ao Iguape tivemos também como pauta a atualização do processo de composição do evento. Neste sentido, fizemos várias reuniões com os professores e outras pessoas da comunidade, que se envolveram em maior ou menor grau. Em alguns desses encontros chegamos a questionar a efetividade do processo, que tínhamos desencadeado, pela constante ausência de boa parte dos professores nas discussões. Nosso intuito de envolver o maior número de pessoas na dinâmica de formação da biblioteca estava restrito aos professores e às outras lideranças de movimentos artísticos de Santiago. Achávamos, de início, que esse seria um centro irradiador dos interesses comuns das pessoas da comunidade, representadas por esse grupo específico.
A complexidade de desenvolver um processo de formação de uma biblioteca comunitária ficou mais visível no contato que tivemos nos dias 16 e 17 de dezembro na comunidade. No dia 16, fizemos mais uma reunião com os professores. Como já havíamos identificado, poucos compareceram. Independente disso, além de decidirmos a data do evento, 27 de janeiro de 2001, soubemos que uma liderança da comunidade tinha o mesmo interesse. A notícia, ao invés de soar como algo positivo - mais alguém que viesse colaborar com o grupo - pareceu significar um ponto de constrangimento entre as pessoas envolvidas.
No dia seguinte, fomos ao encontro de Sr. Rosalvo, membro de uma das quatros associações do Iguape que possuía um projeto de construção de uma biblioteca. Tínhamos a intenção de explicar as etapas do processo da composição conjunta de uma biblioteca que já havíamos desenvolvido e convidá-lo para que confluíssemos nesse propósito. Ele questionou a presença de pessoas que não fossem da comunidade no processo de elaboração do projeto, por considerar necessário que a comunidade se mobilize por conta própria. Reforçamos que nosso propósito não é, de forma alguma assistencialista, e que só viríamos a compor um grupo de atividades se o método de elaboração viesse a evidenciar a participação efetiva de membros da comunidade. Mesmo com certa resistência, Sr. Rosalvo decidiu que iria se incorporar ao processo de composição coletiva da biblioteca.

Retornamos na primeira semana de janeiro com objetivo de reafirmarmos o compromisso, rediscutir a proposta e definir as atividades a serem realizadas no dia 27. Foi mais uma reunião, desta vez, contando com a presença de alguns professores e outras pessoas da comunidade, ficaram decididas algumas deliberações, dentre elas, que este evento, que simbolizaria o início de um processo de construção da biblioteca, seria chamado " O dia da Biblioteca no Iguape ", a qual seria provisoriamente instalada na sede da associação. Elaboramos uma programação de atividades artísticas a serem desenvolvidas no dia, ficando algumas pessoas (da comunidade e da universidade) responsáveis para a viabilização das mesmas.
· Entrando na História de Santiago ( performance teatral contando a história da localidade);
· Peça teatral sobre a importância do livro, abertura do evento;
· Tribunal Simulado ( a leitura seria acusada/defendida/julgada);
· Oficina de Fotografia;
· Oficina de Pintura;
· Oficina de Poesia;
· Apresentação do Grupo de Dança;
· Roda de Capoeira;
· Equipe de divulgação do evento.

Na semana anterior ao Dia da Biblioteca no Iguape, houve a última reunião antes do evento para confirmar todos os itens que tinham sido escolhidos no encontro do dia 16 de janeiro. A expectativa inicial era que tudo estivesse sendo feito progressivamente desde a semana anterior, que todas as pessoas responsáveis por algum elemento da composição do evento estivesse num processo contínuo de envolvimento, como estávamos "do lado de cá". Na ocasião, tivemos conhecimento que houve uma reunião entre algumas pessoas da comunidade para discutir a construção da biblioteca e a participação de pessoas do projeto neste processo.
Este encontro evidenciou o que mais tarde iríamos constatar com mais clareza. Boa parte dos professores tinha se afastado do evento, não demonstrado nenhum outro tipo de interesse ou envolvimento com a idéia de composição da biblioteca. Uma questão em particular chegou a colocar em dúvida a realização do evento: "como podemos chamar esse dia de Dia da Biblioteca no Iguape se a biblioteca não está pronta?". Enfim, a idéia da biblioteca não tinha ecoado para um número representativo de pessoas, e o objetivo do evento, que simbolizaria o inicio de um processo de envolvimento e amadurecimento das pessoas em relação à proposta, não estava claro para parte do grupo da comunidade que se apresentava enquanto representantes nessa tentativa de fusão dos diferentes grupos humanos.
No final de uma conversa um tanto exaustiva decidiu-se que, mesmo com as divergências, deveria finalmente existir o "Dia da Biblioteca no Iguape", permanecendo o evento com as mesmas características anteriormente decididas.
No dia seguinte, fomos contatar com cada pessoa da comunidade que havia ficado responsável na composição do evento, confirmamos a participação da maioria e deixamos encaminhadas algumas iniciativas para serem realizadas até data.
Depois de muitas reuniões, e alguns conflitos, finalmente chegou o tão esperado Dia da Biblioteca no Iguape.

" Chegamos. Fiquei um pouco assustada, pois não via ninguém. De repente, surge o prefácio do livro em forma de teatro, percorrendo a praça, justamente para acordar o povo, avisando-lhes que o livro estava abrindo suas páginas para que todos, nelas, viajassem.

Quando eu, uma pequena partícula que ali estava, embarquei neste processo, já tinha milhares de passageiros.


Começamos nossa viagem, passando pelo mundo da argila, com parada obrigatória no adro da igreja.


Todos sujando suas mãos em um produto tão usado na região,
para cobrir o sol, que tanto, suas cabeças, teima em queimar.

No outro vagão, a interação da comunidade com a universidade, através de dois corpos.


Fiquei imaginando o quanto podemos criar com nossos corpos e, às vezes, ficamos parados, nos limitando a usá-lo só para andar.


No vagão da criançada, podemos observar que os jovens de amanhã, queriam participar
e a maneira disso acontecer era a tinta usar,


desenhos pintados a euforia de mostrar,
que aquele vagãozinho um dia vai chegar lá.


O vagão que estava parado, começou a funcionar,
pois dos trilhos precisava para seu trabalho demonstrar,
tinha vários passageiros ansiosos para entrar,
no mundo da fotografia, querendo entender e logo chegar.

Mais esse mundo é infinito, ninguém consegue esgotar,
quando você dominar, uma coisa, outra esta para chegar.
Por isso, milhões de fotógrafos existem, e ninguém, o outro conseguem imitar,
a sensibilidade de cada um é quem vai dizer o seu lugar.

A cabine da poesia, muitos jovens estavam lá,
talvez por serem românticos, demonstrando-se sem medo de errar,
este sentimento não envergonha, precisa se soltar,
se o mundo fosse mais poético, talvez nós teríamos mais calor nos nossos olhares.

A juventude se animou, e começou a declamar,
primeiro, com vergonha; depois, foi crescendo, e sua voz a se soltar,
fazendo, logo após, poemas, para na praça pendurar,
cheios de orgulho de poderem assinar.

Para o vagão dos jovens pescadores, o meu chapéu vou tirar,
esta arte de pesca que domina sem errar,
tem a arte da capoeira que bonito souberam jogar
e demonstrando a seu povo, que os precisam valorizar.


Este vagão funcionou uma hora sem parar,
passamos por Angola, viemos, na regional, parar.
Espero que o vagaõzinho dos pintores consiga neste vagão se juntar.
Casando as duas artes, e juntas poderem demonstrar
que Santiago do Iguape tem riquezas para sobrar.


Para formar o trem, com todos vagões completos, chegou a dança afro mostrando o seu universo, subiram a rua dançando, com todos passageiros aplaudindo.


Encerramos esta viagem, com certeza que outras virão, creio que teremos de aumentar os vagões deste trem. "

Nalva Santos

As lições anti-românticas do caso biblioteca

Todo esse processo descrito da composição coletiva de uma biblioteca no Iguape, foi o primeiro passo de um projeto que visa uma aproximação com os professores e jovens da comunidade, priorizando aspectos da educação que tem como núcleo, e símbolo, as escolas. Um passo importantíssimo no desenvolvimento da metodologia que propomos pois, todos os acontecimentos, consoantes e dissonantes, foram, de certa forma, didático para que visualizássemos pontos conflitantes tanto nesta organização social como no processo de desenvolvimento de qualquer atividade que se queira coletiva.
A ansiedade de fazermos algo com a comunidade, sentimento decorrente da nossa "formatação" acadêmica, nos cegou para situações sintomáticas que foram aparecendo durante o processo. Demostrou a prematuridade de termos um referencial material a ser composto num entre-lugar, onde nem nós, da Universidade, nem a comunidade tem o domínio. Não levamos em consideração a rede, complexa e não-linear, de relações existente na comunidade, e mais, acabamos por nos envolver de forma a personalizarmos, em alguns momentos, um processo que deveria ser coletivo.
Foram pontos visíveis da discordância entre o que propúnhamos e o que foi configurado ao longo do processo: o afastamento de muitas pessoas envolvidas no início por desavenças políticas ou afetivas; o embate expresso por algumas pessoas da comunidade, de alguma forma próximas dos acontecimentos, nos questionamentos: "como podemos chamar esse dia de Dia da Biblioteca no Iguape se a biblioteca não está pronta?" ; "de quem será a biblioteca?. Questões essas que caracterizavam o não entendimento da proposta inicial, que era consolidar um desejo da "comunidade". Uma biblioteca comunitária cujos donos seriam todos aqueles que se interessassem em utilizá-la. Não um instrumento de poder político ou institucional.
A partir destes acontecimentos, nos vimos numa situação um pouco complicada pois, mesmo que mal interpretada, criamos uma expectativa entre as pessoas que circularam em torno desse evento. Construiríamos, então, uma biblioteca e assim teríamos o reconhecimento de um trabalho que, feito dessa forma, feriria nossa filosofia, ou acalmaríamos os ânimos não atendendo aos anseios, mas preservando a integridade de nossa proposta? A resposta dessa pergunta é dispensável, mas a análise dessa situação é imprescindível para nossas ações futuras.