NO
IGUAPE
Os
caminhos de Santiago
"Chegamos
novamente a uma freguesia de terras boas e próprias para o plantio
de cana-de açucar, o vale do Iguape .
Mais velha
que a freguesia de Cachoeira, a freguesia de Santiago do Iguape foi
criada nos últimos anos do século XVI com o nome de Paraguaçu.
A primeira igreja matriz foi construída no engenho de São
Domingos da Ponta, dedicada a São Tiago porque seu proprietário,
Antônio Lopes Ulhoa, era cavaleiro da Ordem de Santiago de Compostela
.
O extenso rio Paraguaçu, que empresta o título ao nosso
projeto, teve seu nome escrito como Peroaçu ( por Mem de Sá),
Paraassu (por Nóbrega), Paraguaçu (Gabriel Soares de Souza
e o Padre Jesuíta Simão de Vasconcelos) e Perasu (Franz
Post, em 1645) . Por ele (es)correu toda a riqueza gerada no Recôncavo
Baiano.
Fundamental para o comércio, o Mar Grande (do tupi para-guassu)
já é citado na primeira expedição guarda-costas
que aportou no Brasil, em 1501. Nele, em uma ilha denominada "Dos
Franceses", no baixo curso deste rio (proximidades de São
Francisco), os índios comercializavam com estrangeiros. Suas
águas férteis atráiam os índios Paiaiás
para pescarias até a segunda metade do século XVII. O
medo de ataques indígenas está expresso na arquitetura
regional mais antiga ( Capela de Nossa Senhora da Pena, por exemplo).
Alguns dos primeiros colonizadores do Vale do Iguape foram: Antônio
Peneda; Antônio Rodrigues, dono de fazendas e canaviais; Antônio
Lopes Ulhoa, que desde 1587 possuía um engenho no vale ( o San
Domingos da Ponta) e Antônio Dias Adorno , ancestral de uma das
mais influentes famílias de Cachoeira durante séculos.
Atualmente, a professora Maricélia conta a história de
que por volta de 1564 a bacia do Iguape era formada por 22 engenhos.
Dentre eles, estavam : Engenho da Ponte ou Ponta ( o San Domingos da
Ponta) , Engenho do Meio (também denominado de Horta, pertencia
a família Bulcão), Engenho da Campina, Engenho Baranhão
(pertencia a família Aragão e hoje é a Fazenda
Exemplo), Engenho Acutinga (hoje Opalma, sede de uma fábrica
desativada de azeite de dendê), Engenho Santa Catarina (também
denominado de Bela Vista), Engenho da Cruz, Engenho Cassinum (era divido
em três partes: Ponta Grossa, Guaiba e Guaibinha), Engenho Novo
de Baixo, Engenho da Vitória ( até 20 anos atrás
ainda produzia aguardente, foi o que mais prosperou e também
o que durou mais tempo), Engenho da Praia, Engenho Velho ou da Pena,
Imbiara, Calombá (ou Calembá, cujo nome era engenho de
São Benedito do Calembá) e por fim o Engenho Central Santiago
do Iguape que deu origem a Vila de Santiago a qual foi construída
em cima Fazenda Monte Alegre que pertencia aos donos do engenho da Ponte.
As regiões de Caonge, Dendê e Caimbongo acredita-se que
são remanescente de quilombos.
Na vila de Santiago criou-se a freguesia do Iguape, conhecida naquela
época de colonização como "A Gerença",
considerada o pólo comercial da região. Neste local administravam
toda a produção de cana-de-açúcar e comercializavam
piaçava, estopa, azeite de dendê, farinha de mandioca,
quiabo e outras mercadorias. Havia também a fabricação
e venda de cestos e esteiras.
A pesca naquela época, ao contrário de hoje, não
era a principal atividade produtiva. Feita através de gamboas,
ela servia apenas para o lazer ou para um acréscimo na renda
familiar. A subsistência da maioria das famílias era proveniente
da agricultura no cultivo principalmente da mandioca, da cana-de-açúcar,
do dendê e do quiabo, além da fabricação
caseira do azeite de dendê e da farinha de mandioca ( muitas famílias
tinham uma casa de farinha no quintal).
Haviam também famílias que sobreviviam da extração
da piaçava, da madeira, da engenharia marítima (com a
construção de barcos, saveiros e outras embarcação)
e do comércio.
As mercadorias produzidas na região eram comercializadas na freguesia
do Iguape ou transportadas diretamente para Feira de São Joaquim
/ Salvador através de embarcações.
Conta Seu Tatuí, senhor de 66 anos de idade, filho do Iguape,
dono de um Quiosque (conhecido também como o "point"
da seresta de Santiago) e do único estaleiro sobrevivente do
distrito, que Santiago já chegou a ter quatro estaleiros funcionando.
Produziam cerca de um barco (estilo saveiro) por mês , vendido
para pessoas da própria região, empregando cerca de 60
pessoas. Todo transporte era marítimo, inclusive de pessoas doentes.
Os navios (dentre outras embarcações) iam à São
Francisco e ao Iguape até 1960. A partir de 1964 apenas os saveiros
continuavam fazendo o transporte, e em 1968 a estrada começou
a ser construída e assim o transporte marítimo foi sendo
desativado.
Várias pessoas que trabalhavam na carpintaria naval passaram
para carpintaria civil e tiveram que se mudar Salvador. O estaleiro
que antes empregava 25 carpinteiros, hoje tem apenas quatro pessoas
trabalhando: Seu Tatuí (dono do estaleiro que foi herdado do
sogro), Pedro (que também é artesão) e mais dois
senhores - Coisas do " progresso".
A professora Maricélia nos relatou que agricultura no Iguape
começou a decair a partir de 1975, vários fatores influenciaram
neste processo, um deles foi o aumento da população, "
... nem todos possuíam um pedaço de terra e os que tinham
ficavam com receio de emprestar principalmente depois da Reforma Agrária..."
Assim, a pesca foi sendo instituída como a principal atividade
produtiva dando sustento a maioria das famílias. O seu pai era
fazendeiro, carpinteiro, pescador e alfaiate. Em Santiago já
chegou a ter escolas, tendas de alfaiates e alfataiarias.
Maricélia trabalha na Escola Rural de Santiago lecionando nas
séries iniciais do ensino fundamental, realiza um trabalho de
incentivo do conhecimento e da valorização da história
e da cultura local. Estudou Magistério em Salvador e depois que
os pais faleceram fez um pacto com seu irmão Inácio que
ambos não sairiam do Iguape.
É casada com Chico Rangel, um dos herdeiros da fazenda sobre
a qual está construída a sede do distrito. Ele nos relatou
que um de seus parentes, Piroca Rangel (Pedro Paulo Rangel), era pequeno
comerciante e funcionário da fazenda. Esta era propriedade da
família Novis, também atual dona da fazenda Campina. Numa
negociação acabou se tornando proprietário de parte
da fazenda, que já tinha algumas casas construídas. Até
hoje ele e os irmãos recebem uma taxa anual dos moradores que
segundo relata não dá para muita coisa, além de
pagar impostos.
Seu Aniceto, ex-vereador , nos disse que antes corria um certo capital
no local. Tinha um comércio regular e muitas casas comerciais
como as de Pedro Rangel, Carlos Lima Silva, Felipe Amorim, João
Amorim, o próprio Aniceto e outros. Havia também armazém,
panificadora, era comércio bom. Tinha loja de tecidos, armarinho,
correios, embarcações que transportavam verduras e outras
coisas para Salvador: duas, segunda-feira; três, quarta; duas,
sexta e duas, domingo; iam todas carregadas de quiabo, que tinha demais.
Há poucas décadas atrás, veio o comprador de terra
que fez a Opalma. O povo deixou de plantar. Mudou muita gente para Acupe,
município de Santo Amaro. A OPALMA tomou conta das terras, acabou
administrando mal, e a indústria foi a falência, deixando
como herança a miséria na região.
Seu Aniceto foi pescador, plantou roça, teve casa comercial,
onde trabalhou por muitos anos. Em 76, foi convidado pela população
para ser candidato a vereador e foi o mais votado de Cachoeira (neste
tempo Santiago não tinha mil eleitores); teve 380 votos. Começou
a trabalhar por Santiago.
A praça era só mato. Não se viam as casas do outro
lado. Tinha três salas de aula, uma professora do Estado - as
do município eram leigas. Então, pediu mais professoras.
Tomou posse em 01/02/77. Sua prioridade foi a educação
e trouxe até mestras de Cachoeira. Às vezes, hospedava-as
em sua residência. Segundo ele, Iguape hoje trabalha com matéria-prima
dele.
Nesta época, existia o projeto de uma Sociedade Amigos do Iguape,
um projeto de 1957.Faziam as reuniões nas casas de terceiros
como: o pai de Inácio, irmão da Profª Maricélia,
Antonio Calafaz.
Seu Aniceto sempre foi convidado a participar dessas reuniões.
Decidiu participar e foi lendo os livros de atas para acompanhar de
perto esta sociedade. Em conversa com o deputado Rocha Pires, este sugeriu
que fizesse um requerimento ao prefeito, Fernando Wilson Magalhães,
solicitando uma ajuda em nome da Sociedade. Foi feito uma doação
de 10.000 (dez mil cruzeiros). Com este dinheiro, foi construída
a atual sede, com a contribuição de algumas pessoas de
Santiago. Foi muito importante.
Santiago também teve uma escola de filarmônica. Conseguiram
os instrumentos e estes foram emprestados aos alunos e aos poucos foram
sumindo.
Foi ele quem solicitou a construção do prédio escolar
Pedro Rangel. Foi ele também que pediu a construção
da escola em: Tabuleiro da Aguaiara, Brejo, todos povoados do Iguape
e outra na Cascaleira; reativou uma escola na Campina, que funcionava
no casarão. O terreno para construção do Colégio
Eraldo Tinoco, foi doado pela família Rangel, conseguido pelo
mesmo.
O seu irmão, também ex-vereador, não conseguiu
se reeleger na eleição passada.
Seu Aniceto é muito popular e tem hoje, em Santiago, 104 afilhados.
Mesmo com todas essas as conquistas, da vida política sobraram
muitas mágoas. "Vale a pena ser político? Não
vale a pena ser político", nos disse.
Outra liderança bastante decepcionada com a política do
Iguape é Lena, que desabafou: "... o que acaba com tudo,
o que arrasa com tudo é a política ..."
Ela já foi candidata a vereadora por duas sem obter muito sucesso.
Organiza um grupo de teatro desde dos treze anos de idade ( foi uma
das principais articuladoras de peças teatrais e festas na comunidade)
e é também líder espiritual da religião
messiânica no Iguape.
Lena nos relatou que em 1988, durante o governo de Valdir Pires no qual
foi lançado um projeto da Legião Brasileira de Assistência
- LBA-incentivando a criação de pequenas e micro-empresas.
Fundou-se a Associação de Moradores do Iguape, da qual
foi a primeira presidente. Conseguiram, com apoio deste projeto, viabilizar
cinco micro-empresas em Santiago: uma doceria (com oito funcionários),
uma oficina de corte-costura (com nove funcionários e ajudantes),
a casa de azeite de dendê ( agregava mais de 15 funcionários),
criatório de ovelhas e fabricação de material para
pesca. Infelizmente essas empresas se dissolveram após a sua
saída da direção da Associação, a
qual ficou praticamente parada por cinco anos.
Teve também o projeto da CAR ( órgão ligado ao
Governo do Estado) que fazia investimentos nas zonas rural e urbana
de Cachoeira. Lena participava das reuniões de um Conselho criado
pelo órgão e tentou viabilizar a construção
de um criatório de peixes e camarões no vale do Iguape.
Não obteve sucesso, o Bahia Pesca ( outro setor do Governo) condenou
a área do rio por não haver extensão suficiente
para construção de um criatório que beneficiasse
a toda comunidade, pré-requisito para efetivação
do investimento.
Antes era assim...
As mudanças
nas festas profanas e religiosas contrariam muita gente. Soubemos de
algumas delas como a da festa do padroeiro, São Tiago. Na véspera
da festa, os pescadores enfeitavam as canoas, fazendo uma procissão
marítima até São Francisco. Já no dia, a
igreja lotava para prestigiar o evento, o que não ocorre hoje.
Na procissão do padroeiro, as moças que puxavam o ritual
com cantigas religiosas, usavam vestidos brancos com alguns detalhes
vermelhos. Eram senhoras, em sua maioria, mostrando que os jovens não
estavam muito devotos a ponto de correrem todo o local carregando os
santos. São Tiago estava muito modesto na sua representação.
À frente dele, com maior destaque, uma santa liderava o percurso:
Nossa Senhora. A procissão iria correr todas as ruas de Santiago,
para protegê-las e, ao mesmo tempo, alegrar os idosos, que já
não podiam sair de suas casas.
Queima de fogos e cânticos alimentavam o festejo:
" Daí-nos a fé
Oh! Virgem
O bradoar abençoai
Queremos Deus
Eu é o nosso Rei...ei
Queremos Deus
Que é o nosso Pai"
Dona Pequenita, 75 anos, nos disse que as festas antes eram muito boas:
havia palanques, bandas de música e eram três dias de festa.
Eram são Tiago, São Benedito e Nossa senhora da Conceição.
"Hoje as festas é uma missa e pronto, ou na sede e todo
mundo enche o bolso"
No tempo em que era moça , fazia piquenique com as amigas. Era
uma grande disputa entre as ruas. Se a rua Monte Alegre fizesse um cozido,
a outra não participava.
Naquele tempo, pediam esmola paras as festas. Tinha comunhão
e missa mensais. Na Igreja tinha cama, fogão e banheiro para
o padre que se hospedava lá.
Dona Pequenita critica muito a maneira dos jovens de hoje . Antes, os
pais não deixavam as moças irem ao baile, porque diziam
que moça no baile era comprada. Só iam em festas de Reis
ou familiares e saíam sempre com uma pessoa mais velha. Ela citou
o terno "Primeiro Nós" e "Cruz Vermelha"
depois veio o "Ideal". A sua madrinha fazia um terno no qual
ela foi a estrela pela primeira vez. Cantava bem. Agora, "só
querem saber de pular".
O Reis ( terno de reis), antigamente , era surpresa. Escolhia uma casa,
chegava cantando , a dona da casa só podia abrir quando eles
cantavam.
"
Viemos cantar o Reis
Como se canta na corte,
E o senhor, dono da casa
Deus lhe dê uma boa noite."
Depois
de abrir a porta, começava o samba de roda. Eles levavam comida
e bebida, porque o dono da casa não estava preparado.
No carnaval tinha afoxé, nego fugido- que era pintado todo de
preto, "com os beiços vermelhos, danado correndo pela rua";
hoje eles passam lama.
Quando era tempo de festa havia entrega de bandeira - Santamazorra.
Saíam com uma caixa cheia de porcarias, bonecos e ficavam pedindo
esmola para Santamazorra .Quando a pessoa dava dinheiro, mandava cantar.
"
Santamazorra jurou
Coração de pedra dura
Todo dinheiro que ganha
É pra comprar rapadura"
Tudo isso
acompanhado com palmas e violão. O dinheiro que tirava era para
fazer as festas e samba. A seresta apareceu depois que Dona Pequenita
casou, mas seu marido não gostava que ninguém a abraçasse.
Seu Tatuí, 67 anos, dono do point de serestas de Santiago, recorda-se
com saudades do seu tempo de juventude, conta sobre os bailes que aconteciam
nessa época no distrito. Neles, os homens só podiam entrar
engravatados . A gasosa ( uma espécie de refrigerante ) e a cerveja
eram servidas "quentes" porque não tinham geladeira.
Nos bailes havia muita paquera: os rapazes compravam doces para agradar
e conquistar as moças.
Naquele tempo havia mais homem do que mulher no Iguape, muitos rapazes
brigavam para não perder suas namoradas, seu Tatuí foi
um destes. Teve que casar cedo porque engravidou a sua senhora, "antes
era assim , o homem tinha que ser homem", os pais obrigavam o casamento.
Tiveram cinco filhos cinco filhos e em 2004 farão 50 anos de
casados.
Lembra-se do nego fugido, uma espécie de brincadeira performática
na qual alguns homens se pintavam com carvão representando os
negros que fugiam dos engenhos enquanto outros fingiam ser os capitães
do mato que saíam correndo pelas ruas e matos tentando capturar
"negos" que haviam escapado , quando encontravam algum "nego"
davam tiros de espingarda de espuleta, laçavam na corda e prendiam
"o danado".
Tinha também a Chegança: os homens saíam dançando
pelas ruas, iam de Santiago até Saubara e vice-versa.
Um projeto
para Santiago
Numa noite
de sábado recebemos uma visita inusitada na pousada. Dois rapazes
pediram licença, perguntando se éramos da universidade
e dizendo que tinham algo para nos mostrar. Maurício e Rogério,
um carpinteiro e outro comerciante, não necessariamente nesta
ordem, apresentaram um projeto de urbanização e criação
de uma praia para Santiago. A "planta" feita toda em lápis
de cor mostrava uma praia que ia desde a igreja até próximo
ao pontilhão, amparada por um muro de contenção
e um aterro de areia. Na praia além de quiosques, tinham casais
namorando, nadando. O interessante é que no desenho muitas casas
que ficam próximas ao lagamar foram simplesmente abstraídas.
Após a apresentação, perguntaram se poderiam contar
com nosso apoio, já que seria importante para o turismo da região
e não teria impacto ecológico. Insistimos em dizer que
não poderíamos fazer muita coisa, nem colocar o nome da
universidade num projeto desse que requer um estudo técnico com
avaliações do IBAMA, Marinha, prefeitura, e, sobretudo,
uma maior articulação da comunidade em torno da idéia.
Explicávamos qual o nosso papel na comunidade, quando eles apresentaram
mais dois desenhos com escudos para as escolas Rural e Pedro Paulo Rangel,
que não possuíam farda. Numa delas podia-se ver alguns
ramos de café e cana de açúcar, que representariam
respectivamente as riquezas do Brasil e Santiago; na outra, algo mais
simples: um livro aberto. Ponderamos que quem podia avaliar isso seria
a própria escola e a Secretaria de Educação, lembrando
que a falta da farda pode ter relação também com
a questão financeira dos moradores.
A conversa não evoluiu muito em torno das idéas, pois
insistiam em pedir apoio, ao mesmo tempo que reafirmávamos nossa
proposta. No entanto, eles nos contaram algumas coisas curiosas como
a história do "milagre de São Tiago". O "caminho
de Santiago" é um caminho de areia pelo meio do manguezal
que vai até a Ilha do Capim, sem que a pessoa molhe os pés.
No meio da Ilha do capim tem o "poço dos milagre de Santiago",
que hoje em dia está seco, mas onde várias pessoas já
alcançaram muitas graças. Outra coisa curiosa foi a descoberta
que Santiago já tivera um cinema no passado, o Cinema São
Jorge, que funciona num prédio próximo à matriz
, em frente à casa de Inácio.
O que produzem,
para quem produzem, e como produzem...
"As
mulheres de Santiago, / Com sua fortaleza fibral
batalham todos os dias, / Para elas isso é normal.
Não percebem que têm direitos /Assim como os homens os
têm,
Conformam-se com a vida /Sem exigir nada além."
Nalva Santos
Santiago
do Iguape e São Francisco do Paraguaçu são distritos
separados por sete quilômetros de estrada e com população
estimada 5.000 e 1.500 habitantes respectivamente. Compartilham muitas
semelhanças: clima, solo, paisagem e sobretudo o "Sistema
Produtivo": pesca e mariscagem, único meio de sustento da
maioria da população. O conjunto de condições
climáticas e a localização dos dois distritos parecem
bastante favorável à piscicultura. Porém a população
pesqueira encontra sérias dificuldades no escoamento da produção,
ficando limitada a negociatas com o comércio local.
Outra dificuldade apresentada pelos pescadores é a falta de recursos
para a compra de equipamentos básicos como: canoas e redes de
pesca (pois boa parte trabalha com material dos comerciantes). Seria
necessário para que alcançassem autonomia, a aquisição
de outros equipamentos: freezer, caminhão frigorífico
e até um depósito para que os pescadores conseguissem
negociar o pescado com melhores condições de preço,
o que garantiria maior liberdade e independência, permitindo uma
(re)organização em torno deles (pescadores) e do comércio
local.
Andada
do caranguejo
Durante
o dia de domingo aproveitamos para conhecer a tão falada "andada
do caranguejo", que ocorreria uma ou duas vezes ao ano: a primeira
após o Dia de Reis e outra normalmente no carnaval. Segundo Tiago,
professor da Escola Rural, em períodos de trovoada, no verão,
os caranguejos ''ficam doidos''. Desde o dia anterior que víamos
muitas pessoas passando pela praça com enormes sacos cheios de
caranguejo, mas não imaginávamos como seria. Fomos ao
manguezal, sem a indumentária exigida - tênis, botas ou
luvas -, apenas com um saco e a experiência de Germano, membro
do grupo de dança. A atividade é mais divertida do que
arriscada, e contrariando as gozações e previsões
dos moradores locais conseguimos pegar uns trinta caranguejos.
Soubemos
que apenas nesta época do ano o caranguejo é uma maior
fonte de renda para os moradores; já nos demais dias do ano,
o lucro não costuma compensar o trabalho.
Religião
"Quando
o homem tem que enfrentar a morte possível a qualquer hora do
dia ou da noite , reza mais do que aquele que se sente em segurança
na sua casa" Carlos Ott, acadêmico e historiador
Dona Dodô
No início,
havia o temor do inferno, então se construíram as igrejas
com altares para quase todos os santos. As capelas também foram
palco dos sacrifícios em troca das graças divinas ou somente
um pedaço do céu. Diante disso, ouvimos de dona Dodô,
contadora de histórias, que não dispensa a tradição
das rezas antigas: ''Hoje as pessoas não tão rezando mais,
tão alinhavando''. Ela afirmou que as 21 imagens do Convento
de Santo Antônio, em São Francisco, passavam beleza e ostentação
para quem andava por ali.
A devoção era tanta que citou os nomes dos santos dispostos
nos diversos altares. Avisou que em cada um deles havia um Senhor do
Bonfim. No altar-mor: Jesus crucificado, Senhor do Bonfim, São
Tiago, a Custódia, Santo Antônio de Lisboa, Santo Antônio
de Almirante, São Gonçalo, Coração de Jesus
e Santa Rita; na sacristia: São Jorge, Nossa Senhora de Lurdes,
Deus Menino, Senhor Morto, Nossa Senhora Menina, Senhor Morto, Santa
Rita, Retrato das Pedras, Capa da Custódia, Guarda Sol do Santíssimo,
Nossa Senhora do Livramento, quatro Senhor da Cruz e assim por diante.
''Quem podia dar detalhe, tudo já morreu''.
Mas depois que chegou as outras irmandades, os vigários…'' tudo
mudou'' e tanto as festas, que traziam a tradição de passar
a bandeira, quanto as rezas foram alteradas. ''Eu só vou naquilo
que eu encontrei'', afirmou.
Lena
Nossa conversa com Lena foi muito interessante. Realizamos tal entrevista
em sua casa-templo(?), onde ela falou sobre religião e seu envolvimento
com o Messianismo, de M. Sama - ela é uma espécie de introdutora
dessa prática religiosa no Iguape. Falou bastante das características
e benesses de sua religião, o que representa o Jourei - espécie
de passe energético-espiritual(?) - e como há sete anos
conduz os cultos messiânicos no Iguape. Apesar de suas práticas
espirituais se relacionarem com o universo religioso oriental, encara
sua ligação com o culto aos orixás como um "débito"
deixado por seus antepassados - sua relação com os preceitos,
crenças e entidades das religiões afro já vem de
família. O caruru, que até hoje dá, também
faz parte desse "débito".
Sua atuação nos eventos culturais-religiosos também
foi um importante tema da conversa. Pelo que contou, sempre foi uma
das principais articuladoras de peças teatrais (para as quais
escreve textos e dá aulas de representação) e festas
na comunidade. Destacou a "Missa do galo", o "Nascimento
de Jesus" e a "Paixão de Cristo", peças
produzidas para comemorações específicas. Atualmente
existem mais ou menos 23 pessoas em seu grupo teatral, número
que aumenta com a proximidade de alguma celebração. Durante
a Semana Santa, por exemplo, são mais de cem pessoas envolvidas
nas dramatizações. Também conversamos sobre outros
assuntos, como política, cultura etc.
Iaci
Com a professora Iaci, também conversamos sobre religião
e o misticismo que envolve esse tema na pequena comunidade do Iguape.
Antes de relatar algo sobre essa conversa, vamos recordar o número
de religiões/denominações que há no vale:
o tradicional Catolicismo; o velado culto aos orixás (Candomblé);
o culto de origem afro-indígena (a Umbanda/Mesa Branca); o Espiritismo
(Kardecista); os cultos evangélicos e batistas; e o já
citado Messianismo, de M. Sama. Iaci, nossa querida Tica de Zélia,
que conhecemos e entrevistamos no início do projeto, já
havia revelado suas crenças e práticas espirituais. Recentemente,
citou Irmã Graça como sua mentora espiritual e inspiradora
da Campanha Alimento pela Vida, que no mês de dezembro coletou
mantimentos para a população carente do Iguape, reunindo
várias pessoas num grande encontro cultural-beneficente em Santiago.
A capoeira
"Capoeira é vida, é lazer, é dança,
é arte, é amor, é cultura, é alegria, é
tristeza. Capoeira pra mim é tudo, é nada. Por que tudo
e nada?
Porque desde quando a gente se interessa por uma coisa, tem aquele objetivo
de aprender. Esforço, força de vontade.
Capoeira é compartilhar com os amigos, com os pais, com os irmãos
dentro de casa. Nunca usar drogas, jamais.
Capoerista foi discriminado. Muitas vezes, andava pela rua e passava
um branco e dizia ' ali ó, coisa de negro'.
Eles pensam que estão humilhando a gente, mas não.
Só faz lembrar que a gente veio do passado, um povo muito sofrido,
mas vivido por dentro. Como a gente sofria no chicote do feitor ".
Ediney, Grupo Capoarte
Em Santiago existem dois grupos de capoeira. O Capoarte, do Mestre Curió,
e o Grupo Raízes, do Mestre Joel. Não existia nenhum grupo
de capoeira no vale até Mestre Curió, prof. Elenaldo,
aparecer e iniciar o trabalho com os jovens. Depois de um tempo, ele
montou o grupo mas não pode ficar em Santiago. Os alunos não
podiam pagar e ele foi para Maragojipe, já que não tinha
como sobreviver, sem ganhar para dar aulas. Os alunos, que ficaram no
Iguape, muitas vezes vão de canoa, remando durante seis horas
para encontrar o Mestre, treinar e brincar com os amigos de Maragojipe.
Muitas pessoas falaram mal de Curió, quando ele deixou Santiago.
Sobre essa questão, Edney declarou que "capoeirista de alma
não fala mal de outro capoeirista, apenas treina e mostra bonito
o que aprendeu com seu professor" - assunto encerrado. Durante
a nossa conversa, Ediney ressaltou a importância da força
de vontade e da determinação para aprender e evoluir dentro
da capoeira, falou dos cordões, o que significa cada cor, e quais
são os graus que um copoeirista deve alcançar para obter
o título de mestre e, consequentemente, o cordão branco.
Também falou sobre a importância de ensinar a capoeira
para as crianças como uma arte da união, que fortalece
o grupo, reconhecendo sua cultura e identidade. Para ele "quem
está ensinando, aprende mais do que quem está aprendendo".
Nós concordamos que a riqueza desse processo é a possibilidade
de troca, de ensinar-aprendendo e aprender-ensinando. E é essa
certeza que nos move nas terras do vale do Iguape.
No momento, o Grupo Capoarte enfrenta problemas com a falta de espaço
para treinar em Santiago. Eles treinavam perto da chaminé, depois
foram para o Centro Comunitário, mas tiveram que sair de lá.
Edney, atualmente, ensina capoeira para um grupo com 23 alunos em São
Francisco do Paraguaçu, nos disse que cobrava uma mensalidade
de três reais de cada um, mas como nem todos podiam pagar, agora,
ele tem orgulho de dar aula de graça. Muitas vezes vai a pé
até São Francisco para encontrar seus alunos, que, segundo
ele, são parte de sua família.
Quanto à pesca, percebemos uma grande clareza sobre o que significa
essa atividade, a importância que tem na sua vida e, consequentemente,
na vida de toda a comunidade.
"Pescar em tempo de festa? Festa pra mim não me dá
comida, não me dá roupa, não me dá alimento
nenhum e pescaria me dá isso tudo. Fazer o quê aqui, se
não for pescar?"
O Futebol
"Acabou eleição, acabou campeonato..."
Com o objetivo de levantar informações sobre o futebol
no Vale do Iguape, resolvemos entrevistar lideranças comunitárias,
em especial os líderes dos vários times de futebol. Com
uma listinha nas mãos, partimos ao encontro do pessoal:
O primeiro entrevistado foi Edson, presidente do Vasco e membro da Liga
Esportiva. Como ele já estava a par de determinados pontos, decidimos
passar ao próximo.
Encontramos logo depois um outro Edson, este técnico do time
do Caonge, e levamos um papo rápido. O time reúne jogadores
(atletas, como eles gostam de falar!) do Dendê, Calembá
e Ponte, além do próprio Caonge que tem um ano de fundado
e de vinculação à liga, apesar de já existir
informalmente antes. O presidente do clube é Carlos Augusto.
Edson é técnico desde antes da fundação.
Trabalha na roça, além de pescar. O time é composto
por 38 atletas, em sua maioria homens já pais de família,
que trabalham nas roças de dendê ou banana.
Valnei Balbino (Tapó), presidente do Santos. Indiscretamente
o interrompemos quando assistia a uma partida de futebol pela televisão.
Relutou bastante em deixar seu interessante afazer. Mas, vindo conversar
conosco, se empolgou tanto que até esqueceu a partida... Conforme
esclareceu, o time que preside desde a fundação tem dois
anos e tem em média 25 jogadores, mais ou menos 15 deles residentes
no Iguape. Os desportistas estão em média na faixa dos
22 anos, chegando alguns a 33. A maioria deles não estuda mais
e vive da pesca e uns outros poucos fazem pequenos serviços para
garantir renda. Nesse ponto, manifestou seu desejo em que se instalasse
uma fábrica no Iguape, a fim de suprir a demanda por emprego.
Mas, depois reconheceu que a "fábrica" que eles têm
por lá é a pesca. E, para melhorar a produção,
acha que um criatório não daria certo, pois as pessoas
não respeitariam o tempo de pesca. Parece ter algum ranço
com a diretoria da associação.
Romoaldo (Moardo), presidente do Internacional. É o segundo time
mais velho de lá, apenas perdendo em idade para o Vasco, que
foi criado em 1959. O time surgiu com o apoio da política-partidária
e denominava-se Ipiranga. Nesse período ele já fazia parte
do clube, mas não era o presidente. É pedreiro e pintor,
mas a pesca é o que lhe sustenta, assim como aos demais jogadores.
Também como o outro presidente, disse que a pesca é a
"fábrica" que eles têm. Os atletas trabalham
em outras localidades, residindo no Iguape apenas uns seis. Estão
na faixa etária variada, sendo a maioria já adultos com
aproximadamente 40 anos.
Francisco (Tico), presidente do Flamenguinho. Com três anos de
fundado o clube tem, aproximadamente, 22 jogadores, sendo 16 moradores
locais. A maioria são jovens entre 16 e 17 anos e freqüentam
a escola. Ele também é pescador e, assim com os outros,
insistiu na analogia da pesca com a "fábrica" ou "firma"
do lugar. Falou bastante sobre o sistema de funcionamento da liga e
da manutenção dos times, além do "apoio"
político que por vezes recebem. Manifestou diversas insatisfações
nesse sentido.
Xibeu (Roberto), presidente interino do União. Este é
um time da divisão de base - existem alguns outros com os quais
não entramos em contato - onde cerca de 22 meninos, estudantes
entre 9 e 16 anos, participam. Quatro deles moram em Caonge e em Dendê.
O clube foi fundado há dois anos e meio por um amigo seu, que
lhe passou a direção faz quatro meses. Ele tem um vasto
currículo nos times da região, atuando nas mais diversas
posições, sendo bastante requisitado. Ele se mostrou uma
pessoa bastante esperta e ligada nas propostas de trabalho integrado.
Em meio a conversa, já disparou algumas idéias de integração,
inclusive uma grande reunião com lideranças para discussão
de propostas e a criação de uma horta comunitária,
gerenciada e trabalhada pelos atletas para os times arrecadarem fundos.
Ele é pedreiro, trabalha na roça e pesca, além
de fazer pequenos serviços de pintura, eletricidade etc.
Zé Dias, presidente da Associação Desportiva Iguapense
(fundada em 1998). Nossa mais recente entrevista com os líderes
dos times de futebol foi realizada com Zé Dias, aquele que nos
ajudou com a divulgação do evento "Dia da Biblioteca
em Iguape". A conversa foi longa. Discutimos sobre as condições
de vida dos moradores de Santiago; o possível surto de dengue
na comunidade; o problema como transporte escolar entre outros assuntos
- Zé Dias, a todo instante, demonstrava sua preocupação
com a comunidade e sua vontade de realizar algo para a melhoria da qualidade
de vida de seus conterrâneos. Na mais recente reunião na
associação, o seguinte tema inscrito num pequeno quadro
foi discutido: "Como estou vendo o Iguape?". Está tentando
juntamente com os outros participantes da Associação Desportiva
Iguapense realizar ações sociais ao lado das atividades
desportivas propostas pela associação. Tratando, especificamente,
das atividades relacionadas com o futebol, notamos que essa associação
mantêm um minucioso registro em fichas individuais de todos os
participantes, realiza duas reuniões mensais e cobra a cada associado
a quantia de R$ 1,50 para as despesas com o aluguel do espaço,
medicamentos entre outros gastos. Comentou sobre a desarticulação
e extinção da liga de futebol por falta de organização
e compromisso. Zé Dias disse que não é, e não
quer ser político e que a associação nunca aceitou
ajuda financeira de candidato algum. Sente que todos os representantes
dessa associação têm o direito de cobrar como cidadãos
ambulância, transporte escolar e melhorias para a estrada, independente
de qualquer relação com políticos - e é
isso que irão fazer em Cachoeira numa audiência com o prefeito.
Zé Dias lamenta ter que deixar o Iguape e teme que o trabalho
iniciado quando assumiu a diretoria da associação não
tenha continuidade - em breve ele voltará para Salvador.
Sobre a organização mais geral dos times, os representantes
contaram que "quem sustenta nós, somos nós mesmos",
ou seja, os jogadores filiados pagam taxas quinzenais para sustentar
o clube, que variam entre R$ 1,50 a 4,00 reais, de acordo com o time
e o período - quando há campeonato, a quantia tende a
aumentar. Os campeonatos são organizados contando com os times
da região e não é necessário muito: a contratação
de técnicos - os presidentes de alguns times de lá mesmo
ou de localidades próximas, quando há jogos mais importantes
- organização de datas, tabelas etc. Porém falta
envolvimento e união dos grupos. Este ano ainda não houve
campeonato, apenas, "babas organizados" pois como argumentam
os presidentes da liga, não houve patrocínio. Segundo
relato de um dos presidentes, "acabou eleição, acabou
campeonato". O primeiro campeonato foi patrocinado por um particular
e o do ano passado foi realizado com o apoio de candidatos. Alguns dos
representantes fizeram críticas à atuação
da liga, acusando os diretores de desviar o dinheiro que seria destinado
a ajudar os times.
Quanto aos representantes de outros times não contatados, aí
vai uma outra listinha:
Ø Aloísio: Meninos de Rua
Ø Galdino: Opalma
E mais os da divisão de base:
Ø Palmeiras
Ø União
Ø São Félix
Ø Renovação
Ø Bahia
Lendas
e contos
Dona Dodô relatou um fato ocorrido no dia da Festa de Santiago.
Boça, o sobrinho de Inah, apostou com os meninos que iria descer
pela janela da Torre da Igreja. Ele foi descendo na mesma hora que a
procissão estava saindo da igreja com a imagem de Santiago, mas
as pessoas não o viram, até que a coroa de Santiago caiu
e todos notaram o que estava acontecendo. Aí, o menino começou
a gritar e ficou preso por uma casca de ostra. Todos ficaram olhando,
alguns homens pegaram um pano de barco e ficaram esperando o menino
cair. O marido dela, José, ouviu os gritos do menino e saiu correndo,
chegou lá, subiu na torre, se enganchou na janela e disse: ''Por
Santiago você não vai cair!'' E deu a mão ao menino,
ele foi se aprumando na janela e pronto, trouxe o menino para dentro.
Quando eles desceram da torre, as pessoas que estavam embaixo na procissão
mandaram que o menino passasse embaixo do andor de Santiago e fosse
na frente da procissão.
Ouvimos sobre a Biatantã em São Francisco, mas suspeitamos
que tal lenda pertença ao folclore da região do Recôncavo
como um todo. A Biatantã é identificada como um ser estranho
e assombrado, talvez uma alma de mulher. É representada, inicialmente,
por uma esfera luminosa e minúscula que acaba se tornando uma
enorme bola de fogo. Aparece para as pessoas que caminham sozinhas na
mata, à noite, e fulmina todos aqueles que tentam olhar de perto
sua refulgência. Quando duas dessas bolas de fogo aparecem num
mesmo espaço na mata é sinal de que uma luta entre almas
de ex-comadres está sendo travada, como numa revanche. Assim
como em Santiago, também ouvimos histórias de um certo
homem invisível além de outras lendas da região.
O poço
dos milagres
O Caminho
de Santiago é um caminho de areia pelo meio do manguezal que
vai até a Ilha do Capim, sem que a pessoa molhe os pés.
No meio dessa ilha tem o Poço dos Milagres de Santiago, que hoje
em dia está seco, mas onde várias pessoas alcançaram
várias graças.
''Abra-te
campo formoso...''
''Há
mais coisas entre seis mil quiabos do que pensa a nossa vã Academia''
Logo que optamos por retomar as atividades em campo, decidimos intensificar
os laços com as localidades rurais, distantes dos distritos de
Santiago e São Francisco por barreiras, à primeira vista,
intransponíveis. Fomos de kombi até onde foi possível.
Depois, sentimos nos pés tudo aquilo por que passavam os moradores
de Caonge, Calembá, Dendê e outras. Caminhamos mais ou
menos 2 quilômetros, com uma via totalmente ''esburacada'', assemelhando-se
a um palco de rali.
Finalmente, chegamos. Entre seis mil quiabos, quantidade necessária
para o caruru de dona Juvany (Caonge), encontramos mais do que o tempero
do caruru.
Entrevistamos, na realidade, a irmã de Ananias. Ela é
uma mulher de 49 anos, com dez filhos - quando ela começou a
ter filhos, veio logo uma ''barriga de dois'' (duas meninas), depois
perdeu dois meninos -; é dinâmica, trabalhadora, decidida.
Suas atividades envolvem a mariscagem, a plantação de
mandioca, banana, rosas e laranjas. A respeito da mandioca, destacou
o excesso em suas terras e apontou um ponto negativo do produto: ''A
farinha (…) está muito barata. Se ocupa muita gente e não
dá resultado''. Sua casa de farinha é utilizada pelas
pessoas que pagam com a mão-de-obra. Por exemplo, se a pessoa
fizer uma quarta de farinha, paga 3 litros.
No decorrer da conversa, detalhou acerca de uma das vertentes da religião
negra. A Umbanda está na família há muito tempo.
Seu pai, já falecido, era famoso porque "batia couro"
(referência aos cultos de Candomblé) sete dias e sete noites.
Foi perseguido pela polícia na época em que não
era permitido o culto de religiões de origem africana. Ainda
hoje sua fama permanece e existem várias estórias - ou
lendas - a seu respeito, como a de ter feito um barco correr em terra
firme. No início, tinha medo e não acreditava, depois
acostumou e passou a acreditar devido a coisas da vida.
" Esse negócio é tão sério, tão
sério que é melhor quem tá dentro, ficar e quem
tá fora, não entrar. Não que faça medo,
é que é uma coisa que você tem que temer, tem que
obedecer as coisas, senão é pior para você, e, se
você tem essas coisas, é porque tem herança de alguém."
Como tínhamos conhecimento de seu caruru - com cana, feijão
fradinho, feijão preto, banana da terra, acarajé, abará
etc. Relatou que sua mãe tinha feito uma promessa, ainda grávida
dela, de seguir mantendo os dias do caruru de Cosme e Damião.
Assim, foi convencida, não muito facilmente, a continuar com
a tradição. Justificou a hesitação na continuidade
por causa das sucessivas mortes que assolavam Caonge, inclusive da pessoa
que sempre rezou.
Os preparativos iniciam-se na véspera. O caruru acontece no sábado.
No domingo, o povo ainda samba, e, pela tarde, é a festa de São
Cosme e Crispina. Nessa festa, há duas mesas de doces, uma para
cada santo. O caruru, primeiro, é dividido para sete meninos
e cinco meninas, sendo que estas últimas representam a família
de Crispina -com cinco filhas. Naquele momento, fomos convidados para
o do dia 09 de dezembro.
Seus carurus mobilizam muita gente, especialmente mulheres iniciadas.
Tivemos oportunidade de vivenciar essa experiência, durante todo
o dia. Pela manhã, assistimos o corte de 6000 quiabos por 35
mulheres. Todas iam chegando com suas facas nas mãos. O interessante
é que as jovens ficavam de um lado e senhoras de outro; homens,
ao que tudo indicava, não cortavam. O trabalho mais pesado era
destinado a eles: cortavam coco, rachavam lenha, pilavam camarão,
castanha etc.
Já nesse ambiente, o primeiro cântico foi tirado pela dona
da casa para purificar o lugar, ao mesmo tempo que a incensava:
"Louvado seja oh, meu Deus, louvado seja Nossa Senhora no seu altar,
incensando esta casa santa, para os maus saírem e a felicidade
entrar".
Foi o ponto de partida para que todas começassem a cortar os
quiabos: uma quantia para Iansã e outra para Cosme e Damião,
Crispina e Crispim…
"Quando chego no terreiro ou Maria, louve a Deus primeiro, ou Maria
graças a Deus ora meu Deus louvado seja a Deus Ora meu Deus.
Três pedras dentro dessa aldeia, uma maior outra menor, a mais
pequena que nos alumeia, três pedras dentro dessa aldeia.
Eu vinha de um lado, eu vinha do outro, pedrinha miudinha dentro dessa
aldeia quem pede mais, é Deus do céu, a luz que nos alumeia."
Homenagearam aos orixás, citando-os um a um, nesse último
cântico.
Terminado o corte, o tempero estava todo pilado. Era hora das muitas
panelas irem para o fogo. Era, sobretudo, um dia muito especial. Vizinhos
se dedicavam na preparação. Algumas mulheres iam defumar
folhas verdes dos galhos para, mais tarde, forrar o chão como
se fosse um tapete. Víamos tudo como uma novidade. Como podíamos
ter uma postura de alheamento ao tempo dos relógios? Eram outras
temporalidades…
Retornamos à noite. A festa principiou com uma ladainha:
"Bendito seja louvado São Cosme, São Damião,
bendito seja louvado seja a Virgem da Conceição
que também seja louvado, São Cosme, São Damião.
Quando nesta casa entrei, fui fazendo oração
somente pra adorar São Cosme e São Damião."
Depois
de terminada a ladainha, começou um cântico para São
Cosme e Damião:
" Quem não beijou, venha beijar, Cosme e Damião é
que está no altar
Já pedi não peço mais, quem quiser me dá,
me dê, já pedi não peço mais
Dosdoi de ouro vê cá, quem tá dormindo acorda, quem
tá dormindo é Deú,
levanta Deú pra comer caruru"
Foi uma
experiência ímpar. Realmente, ao sairmos às duas
da madrugada, ficamos com a impressão de que o caruru não
obedecera os nossos valores de temporalidade. E, nitidamente, a visão
e o comportamento em relação ao tempo eram outros. Estávamos
no tempo da religiosidade afro-brasileira
"Quando
eu vinha de lá do alto
do alto daquela serra
eu passava pelo caminho
do meu lajedo de pedra
ajoelhei-ma à beira do rio
acabei de vencer a serra"
Mudou a perspectiva, durante o longo ''bate-papo'' que tivemos. Foi
a vez de dizer que já tinha se arriscado na política.
Candidata a vereadora acidentalmente - um amigo de seu marido havia
traído o povo e fôra preso -, ela tentou se eleger para
tirá-lo da Câmara. Não ganhou por obra dos Orixás
que não permitiam a raiva, rancor, ressentimento etc.
Fomos até a unidade escolar local, construída por ela
que contribuiu com uma parte do material. Professora há 20, ela
comanda uma classe multisseriada (alunos de 3ª e 4ª séries
primárias) junto com sua filha, também professora (alunos
de alfabetização e 1ª série). Dividem a mesma
sala da única escola da região: a Escola Cosme e Damião.
Uma das maneiras encontradas para conciliar os níveis de aprendizado
foi a divisão de horários: as aulas da 3ª série,
por exemplo, são das 13 às 15 horas. Além do ensino
regular, contou-nos que faz trabalhos manuais com flores, bordados,
mobília de caixas de fósforos etc.
Tivemos a certeza de que Juvany era (e ainda é) uma referência
fundamental para qualquer desenrolar de atividades. Trata-se, pois,
de uma das pessoas que mais incentivou a Companhia de Dança Afro
Vale do Iguape e, também, uma liderança religiosa na região
de Caonge, Dendê e Calembá.
Mas ela não era a única de iniciativa, na região.
Uma de suas "auxiliares" era dona Tonha, parteira do povoado
de Dendê, já falecida. Em visita e esta pequena localidade,
quase não encontramos as pessoas para entrevistá-las:
alguns estavam na pesca e outros em Salvador no enterro dessa parteira,
certamente alguém que guardava um certo carisma.
Lá, existem cerca de 13 casas e todos os moradores são
parentes. Ninguém sabe dizer ao certo quem é o dono das
terras em que vivem. Sabe-se que foi herança de seus antepassados
que já nasceram ali. Porém, depoimentos esporádicos
afirmam que terra pertencia a Seu Naílton, como relatou a jovem
senhora, D. Valdinete, 27 anos, 3 filhos. A única pessoa que
poderia nos confirmar algo mais seria o próprio seu Nailton.
Entretanto, ao questioná-lo acerca desse dado, ficamos sabendo
que ele era filho do suposto ''dono das terras''. Para surpresa nossa,
ele relatou que as terras tinham muitos donos…
Por sua vez, a dona da educação das crianças do
Dendê era Juvany, que ensinava no "colégio do Caonge".
Esta buscava prestar solidariedade mesmo em um lugar onde as pessoas
tinham uma vida sofrida.
A sobrevivência, basicamente, vem da mariscagem. Os mariscos,
coletados e fervidos são conservados na lama, em lugar fresco.
Plantam aipim, mandioca e dendê. O azeite deste último
é vendido a partir de R$ 0,50 (cinqüenta centavos) , chegando
a R$ 2,00 ( dois reais ) em época de pouca oferta. O azeite da
planta local é mais puro, fino e, portanto, melhor para o preparo
de alimentos. Com o lucro, compram temperos, verduras e querosene.
A casa de farinha onde transformam a mandioca é de dona Adelaide.
Por cada quarta ( medida) de farinha devem deixar oito litros da mesma.
Não há luz elétrica e em noites de lua os moradores
ficam nas portas das casas conversando. São João e Primeiro
do Ano são dias de festa e então tem samba .Quem o grita
é seu Nilton que tem até um tamborim.
As mulheres
paridas passam por cuidados especiais como: ficar sem mariscar por três
ou quatro meses, comer galinha de quintal, não devem comer limão,
etc. São também proibidas de banhar o recém-nascido
antes de sete dias de vida. Em seu lugar, entra em ação
o pai de imbigo: o pai cuida do bebê até seu umbigo cair.
As mulheres mais velhas cuidam para que tudo corra bem: cozinham e orientam
a nova mãe. Com um mês de parto, é feita a meladinha.
É uma bebida feita à base de ervas como arruda e losna;
cebola e cachaça entre outros ingredientes, servida num momento
festivo, comemorando a vinda da criança ao mundo.
Dendê pareceu-nos ser uma remanescência quilombola. E o
foi. Atualmente seus moradores demonstram biotipicamente que já
se misturaram com moradores de outras regiões , como Santiago
do Iguape e Acupe.
Já em Calembá, conforme depoimentos recolhidos, a qualidade
de vida não se diferenciava muito das outras duas visitadas.
Contudo, ''o dono daqui é Jaba'' - este estava ausente no local.
Segundo, depoimentos escutados, ele não cobra nada pelo terreno,
mas…
"Ele num deixou terra pra gente, num queria nem pra gente plantar,
num queria bicho nenhum (…) mas se um animal da gente… quando eles corta
cana, se um animal da gente - que a gente cria aqui tudo amarrado, na
corda -, mas se ele corta cana (…) e um animal da gente escapulir e
cortar, eles cobra (…) se num for buscar, eles morre [os animais]".
A terra, não ficou bem claro, parece que foi comprada pelo tal
de seu Jaba, que a contragosto, permitiu que eles morassem em Calembá
- antigo engenho. No entanto, impôs algumas condições.
Por exemplo, os animais devem ser criados presos, como contou-nos as
entrevistadas. Se, por acaso, ele encontrar um animal solto, onde trabalham
com cana, este é retido e só pode ser recuperado pelo
dono com uma quantia. O depoimento seguinte exibe essas dificuldades:
"Se a gente num tiver aquele dinheiro [50 reais por cabeça],
quer dizer que os animal fica lá (…) ou então fica pra
eles. (…) Tão levando lá pra baixo, eu não sei
onde é, aí a gente não acha mais esses animal se
escapulir".
Os demais pontos apontados foram os mesmos dos outros povoados: água,
''é um sufoco''; a sobrevivência ''é roça,
é maré''; além da distância para um posto
de saúde.
Politicamente, eles - Caonge, Calembá e Dendê -, segundo
alguns depoimentos, sofreram com a iniciativa de um vereador que não
recebeu apoio eleitoral deles e cortou a água para esses povoados.
A previsão é de que haja corte, novamente, porque ele
não foi eleito.
Em síntese, o que vivenciamos nessas localidades não foi
suficiente para, realmente, estreitarmos os laços com os moradores
dali. Faltou-nos intensificar as visitações. Iniciamos,
mas aliviamos, aos poucos. Porém, a continuidade parece urgente,
pois, caso contrário, teremos que estar sempre reiniciando o
processo do princípio. Lideranças, já as temos
- pelo menos algumas. Agora, é preciso detectar um número
mais representativo, ou talvez, alcançar a escola de Caonge como
filão para desenvolver atividades com os jovens.
Quem planta,
não colhe!
Quem semeia vento, colhe tempestade!
Os assentados
de Caimbongo são, em sua maioria, provenientes de uma divisão
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, especificamente
do assentamento Bela Vista, em Santo Amaro da Purificação.
São muitas as queixas ao MST: excesso de participação
nas decisões do movimento, as longas caminhadas para Salvador,
trabalhos excessivamente coletivos e até mesmo a falta de liberdade.
Diante da dificuldade de adaptação a este tipo de organização,
preferiram ocupar o assentamento de Caimbongo mesmo sem o cumprimento
das promessas de benfeitorias do INCRA. Cada família recebeu
do governo o equivalente a R$ 1.420,00 (mil quatrocentos e vinte reais)
e sementes de feijão e milho. Porém, isso não foi
suficiente para melhorar a qualidade de vida dos camponeses. Atualmente
muitos trabalham fora do assentamento para sobreviver.
O acesso é dificílimo: a ladeira que liga Caimbongo a
Santiago do Iguape é íngreme, sem asfalto e muito acidentada.
Isto impossibilita o trânsito de automóveis ou o escoamento
de uma possível produção. O assentamento não
produz nada além da mandioca para a subsistência dos moradores.
Com a farinha feita na casa de farinha de dona Mucinha de seu Mateus
se alimentam e vendem ou trocam por outros produtos em Santiago, Acupe
ou Saubara.
Para produzir precisam de outros recursos como melhoramento da estrada,
apoio técnico e financeiro. A falta de apoio é a principal
justificativa dos assentados para o estado de miséria que muitos
deles se encontram. Mas, mesmo sem apoio nenhum, encontramos casos como
o de seu José Vicente, 60 anos, e seu Albertino, 57.
O primeiro fez cursos na EBDA e é possível ver no seu
terreno muitas plantas medicinais, abacaxi e verduras (plantadas em
período de experiências). Sua roça é um imenso
laboratório: troca farinha por feijão, galinha ou até
mesmo um dia de serviço nas roças vizinhas.
Seu Albertino não é assentado. Trabalha para um que é
feirante em Candeias em troca do pirão (assim ele chama a cesta
básica que recebe). Chegou ao lugar em janeiro e na roça
em que trabalha sozinho já se vê mandioca, mamão,
aipim e temperos (especiarias). Como quase todo morador, caça
na mata teiú, tatu e porco do mato.
Pobreza extrema, saúde prejudicada, falta de perspectiva são
males que afetam a população daquele local. Mais prejudicadas
ainda ficam as crianças, reclamam eles, que só agora foram
contempladas com a construção do prédio escolar,
que será entregue à prefeitura de Cachoeira. As aulas
são ministradas pela esposa do líder do assentamento,
mas quase sempre está fechada. Outras crianças estudam
em Santiago, mas faltam muito, principalmente em época de chuva
por causa do difícil acesso.
Além disso, devido a distância das habitações,
alguns pais proibiam os filhos de freqüentar a escola. Daí,
um projeto de centralização das residências para
que, dentre outros benefícios mais gerais, as crianças
pudessem estudar. Mas essa é uma reivindicação
que parece difícil de alcançar, dada a situação
atual do povoado.
O maior questionamento é com relação à sua
liderança oficial, seu Vasconcelos. Indicado pelo INCRA, ele
desperta medo e descrença entre os moradores que o reelegeram
representante. As queixas são várias. Infelizmente não
percebemos ainda nenhum indicativo de trabalho em grupo para a solução
de problemas comuns. Nem mesmo a troca de serviços, prática
comum em comunidades rurais, é bem vista por eles (dois ou três
assentados o fazem). As pessoas são extremamente individualistas
e tem medo de se expor no próprio assentamento. Mas enquanto
eles não decidirem ser sujeitos da mudança, nada acontecerá
de grandioso e benéfico para todos. Eis o desafio: como ser comuniversidade
nesta conjuntura?
Desafio lançado, a certa altura do trabalho, quando nos demos
conta de que qualquer outra postura nossa poderia reafirmar a prática
paternalista - essência da "ajuda" que as pessoas com
quem mantínhamos contato pediam - decidimos parar as idas até
lá. Foi angustiante perceber que naquele momento não poderíamos
mesmo levar os objetivos do projeto adiante em Caimbongo. Sim, eles
precisavam de ajuda. Mas, primeiro, era preciso que, coletivamente,
decidissem tomar alguma atitude - mesmo que fosse pedindo o tal apoio,
que deveria ser uma iniciativa conjunta, pelo menos da maioria, e servir
para todos.
Se detectar a falta de um senso de grupo nos fez não mais priorizar
a subida até Caimbongo, isso não foi justificativa para
o abandono total do trabalho. Em Salvador procuramos reestabelecer contato
com os principais órgãos relacionados de alguma forma
com o assentamento para saber, a nível institucional, qual era
a real situação do lugar.
"Tudo
o que foi falado de vir, não veio!"
Um dos
capítulos da saga dos assentados na busca pela terra foi a filiação
de alguns membros ao MLT, após desvinculação do
grupo com o MST. Isso fez do Movimento de Luta pela Terra o movimento
social mais próximo a Caimbongo. Ele seria, em tese, quem filiaria
ideologicamente os assentados, além de fornecer apoio em suas
causas e questões internas de gerenciamento e na negociação
com agentes externos.
Por isso procuramos coletar dados sobre a atuação do MLT
no assentamento. Numa das visitas à sede da instituição
conseguimos contatar Lourival Gusmão que, haviam nos dito, seria
um dos únicos dois homens que poderiam falar da questão
Caimbongo. A conversa com este que era um dos coordenadores do órgão
não foi muito longa, mas deu para absorver o modo de condução
do MLT em relação aos assentamentos, incluindo também
a organização do movimento e seu envolvimento político-partidário.
O Movimento de Luta pela Terra é um organismo não governamental
que tem como bandeira a ocupação de terras, exigência
por políticas governamentais de reorganização fundiária
e a reforma agrária. A nível ideológico parece
ter uma maior aproximação com a causa do PC do B, partido
do qual recebe apoio - inclusive Gusmão é, a ele, filiado.
Mas, afirmou que a ligação com tal partido não
é mais especial que a mantida com outras organizações
de fins semelhantes. Mantêm uma relação amena com
a FETAG, porém com o INCRA, ultimamente, as negociações
estão péssimas.
Um ponto recorrente na conversa foi o método agregador usado
pelo grupo. Afirmou ser o MLT um movimento de massa e que não
"tem esse negócio da carteirinha". Logo, não
há a ligação institucional com esse partido - e
não levantam sua bandeira, segundo ele. Além disso, congregam
o apoio de quaisquer entidades que se dispuserem. Aqui na Bahia trabalham
com a COOTEBA, sendo que algumas pessoas desse órgãos
são militantes e outros não. No Pará, segundo exemplo
dado pelo coordenador, eles são apoiados pela igreja, PC do B
e PSB.
Um outro ponto na discussão foi a diferença com relação
ao MST. Esta, para Gusmão, se dá especialmente devido
a o que considerou uma tendência "exclusivista" do outro
movimento. Para ele, o MLT quer construir a reforma agrária,
não tem a pretensão de "dominar ninguém"
- certamente faz uma alusão à rigidez organizacional do
MST. O MLT está sendo divulgado pelo livro da UNESCO e com base
numa pesquisa à nível nacional foi tido como o mais democrático.
O MLT desenvolve metodologias específicas para cada situação
e as decisões são discutidas e tomadas coletivamente.
Apesar disso, enfatizou que nem sempre têm sucesso com tal modo
de trabalhar. Isso porque as decisões democráticas dependem
do grau de organização do grupo com que se lida e do estágio
no processo de posse da terra. A luta pode variar de ocupação
mais tranqüilas, sem conflitos, ou haver muitas dificuldades e
desavenças, o que torna o grupo desagregado.
Membros das lideranças dos assentamentos são militantes
do movimento ou têm vinculação com a FETAG. Então
eles fazem encontros para ajudar no gerenciamento do lugar e discutir
questões de interesse - política partidária e eleitoral,
política dos assentamentos, parcerias, relacionamento humano,
como atuar com as prefeituras. Essa é a forma de apoiar os assentamentos.
Sobre o apoio técnico aos assentamentos disse que atualmente
não há, mas antigamente tinha. Foi durante o período
após o término do programa governamental de assistência
técnica - época em que havia uma equipe de técnicos
do MLT para cada 250 famílias de assentados de uma mesma região
- que eles se aproximaram o máximo de Caimbongo.
Eles não têm mais base nenhuma naquela área de Cachoeira.
Outrora a coordenação fazia visitas à Caimbongo.
Mas já tem muito tempo que eles não vão lá.
Ele mesmo não comparece no local há três anos, e
demonstrou não fazer muita questão de ir.
Contrapondo com outra visita, à sede do MST, estabelecemos contato
com Fábia, coordenadora da Secretaria Estadual do movimento,
que nos deu algumas informações a mais sobre a organização
do movimento, além de discutir algumas possíveis atuações
no assentamento de Caimbongo. Ela afirmou que o assentamento não
tem qualquer vínculo com o MST, e acha pouco provável
que alguns dos assentados tenham vindo do movimento, mas sugeriu que
procurássemos o diretor da regional de Santo Amaro para maiores
esclarecimentos.
Com relação às questões que levantamos sobre
as dificuldades de organização existentes em Caimbongo,
como a falta de assembléias e impossibilidade de destituir a
atual direção, Fábia concordou que nem o MST, nem
nós poderíamos intervir na organização dos
assentados, mas acha que alguns esclarecimentos poderiam ser dados,
como: que para se votar numa assembléia, o pagamento da mensalidade
não é obrigatória. Sugeriu também que participássemos
de uma assembléia para possíveis orientações
no sentido de solicitar uma intervenção do INCRA.
Também tivemos, nesse meio tempo, uma informação
de que a Comissão de Justiça e Paz, CJP, estava tentando
se envolver com a história deles. A partir daí, tornou-se
de suma importância abrirmos esse novos espaços de diálogo
com o órgão e apoiá-los no que fosse preciso.
A CJP, um afluente da Igreja Católica, se propôs a conduzir
o processo, em linhas gerais, de organização coletiva
para possíveis liberações de créditos que
viessem trazer melhorias os assentados da região. O órgão
citado seria um facilitador dos diálogos entre INCRA e Caimbongo.
O primeiro passo foi uma reunião envolvendo Adriana e Hemilson
(CJP), Vital (INCRA) e os próprios assentados para discussão
do crédito de habitação. O representante do INCRA
determinou os dias e horários para assinatura do contrato - quinta
à tarde ou sexta pela manhã. Caso se ausentassem, perderiam
os direitos de crédito e os ''retardatários'' deveriam
conversar com ele depois, em Salvador. Sobre a estrada, Vital lembrou
que há uma dependência de Brasília (descentralização
de recursos). Também destacou a parceria com a CDA além
de outros para angariar recursos financeiros e técnicos visando
iniciar a obra. Porém estava prevista, em orçamento, para
2001.
Acerca da habitação, ele disse que o INCRA não
tem obrigatoriedade de fornecer técnicos para realizar os projetos
de Custeio e Investimento, R$3.000 e R$9.000 respectivamente. Contudo,
o prazo após a assinatura do contrato está condicionado
ao aval do grupo assentado e a posterior comunicação e
autorização do INCRA junto à Caixa Econômica.
Depois da autorização reservada ao órgão,
o prazo para conclusão das construções é
de 120 dias.
A tramitação exposta pelos integrantes da reunião
foi bem clara: o Projeto Habitação deve ser apresentado
e concluído para que se consiga a liberação de
outros recursos (Investimento) sob pena de perda do recurso (habitação),
caso o Projeto Investimento seja apresentado primeiro. O único
que independe da tramitação de outros é o Projeto
Custeio.
O valor liberado para construção das casas é de
R$2.125 sendo R$375, destinados ao pagamento de operários envolvidos
na construção de cada unidade habitacional, totalizando
R$2.500 por família. Os recursos habitação (construção
e mão-de-obra) serão pagos via Caixa Econômica,
diretamente ao operário e casa de construção, devidamente
credenciada, após o término das 68 construções.
O INCRA orienta para que as casas sejam construídas em agrovilas,
pois facilita a instalação da infra-estrutura (água,
luz, escola, transporte) no local.
O segundo passo foi a reunião propriamente dita da assinatura
do contrato, que contou com uma representante do INCRA e ocorreu na
Pousada Tio Pelet, em Santiago do Iguape - embora a própria representante
do órgão não soubesse nem onde estava. Entre acordos
e desacordos, ela explicou o processo e ressaltou a não obrigatoriedade
da filiação ao crédito proposto pela Caixa Econômica.
Alguns reclamaram do acesso à vila, do pagamento posterior de
quem fosse trabalhar na obra de construção das casas,
do pouco dinheiro liberado e outras controvérsias. Houve até
quem reclamasse da reforma agrária e das lideranças:
" A reforma agrária tá sendo feita de uma maneira
muito inadequada, entendeu? Tá faltando apoio ao trabalhador
(…) Essas lideranças atrapalham mais do que constrói alguma
coisa (…) porque essas lideranças, elas só olha mais o
seu lado particular."
Um dos assentados, também, não deixou de fornecer lições
de convivência, destacando que ''a gente tenta se unir, entendeu,
porque não é fácil conviver com pessoas diferentes,
comportamentos diferentes…''.
O terceiro e último passo já aspira por um estágio
mais avançado: ''é ajudar vocês para a autonomia'',
palavras de Hemilson. Na última reunião com o CJP, Adriana
também foi firme: ''essa reunião é de vocês''.
Daí, a luta deles para que as pessoas se comprometam em participar
de eventos que envolvam não só os interesses de Caimbongo,
mas também outros assentamentos filiados a outros órgãos.
Sobre as atividades do SETRAS, que atua em outras regiões da
Bahia com uma organização coletiva invejável, foi
sugerido:
" Agora, nós também tamos pensando, não tem
data ainda, também tamos pensando em realizar um encontro dos
assentamentos do Recôncavo (…) um documento assinado por esse
povo todo [ CPT, CJP etc.] óbvio que ele vai ter mais força
do que sendo um documento assinado por Seu Joaquim dos Anzóis
etc. etc. e etc., tá?"
O objetivo de ''encostar'' nas mobilizações do SETRAS
é obter maior pressão nas reivindicações,
já que a visita ao INCRA se efetiva em massa e os objetivos de
cada assentamento são redigidos em uma pauta única. Como
o órgão planeja apara o dia 5 de abril esse tipo de ação,
a proposta da CJP é que os moradores de Caimbongo reunam-se e
discutam, pelo menos, a inclusão de uma necessidade urgente para
buscar soluções.
A última reunião foi muito tumultuada. Em função
de uma atitude arbitraria do líder da ''associação'',
a afirmação inevitável emergiu: ''não é
a diretoria que é a associação, são todos
(…) o direito é de todos''. De fato, já sabíamos
das dificuldades que a CJP iria encontrar. Afinal, nós tínhamos
passado por isso, antes.
Certamente que a atuação de ambos os grupos é diferenciada;
nós estamos num processo de convivência no Iguape, que
envolve outras áreas e temáticas no município e
eles, a CJP, tem como prioridade a questão agrária, fato
que direciona maior atenção e mais familiaridade com as
questões vivenciadas no assentamento. Entretanto, os objetivos
são coincidentes, pois ambas as instituições almejam
construir uma comunidade ativa, com espírito coletivo e autônoma.
Se essas atuações despertarem uma consciência coletiva
nos membros do assentamento, talvez abra-se novos espaços de
construção de novos territórios, envolvendo a universidade
e a comunidade, irredutíveis a uma das duas categorias.
A Educação
" Santiago e sua resistência(...) Santiago hoje para mim,
amanhã para ti, terra de onde só para Deus um dia eu irei
partir"
Profª. Maricélia
O caso da biblioteca no Iguape
Dada a
retomada efetiva das atividades do Projeto Paraguaçu dentro do
Programa UFBA em Campo III, a qual tivera como marco a realização
de uma reunião com todos integrantes do grupo, inclusive com
os "novos-velhos" membros da comunidade, conforme já
fora citado anteriormente. Ficaram decididas algumas iniciativas a serem
desenvolvidas, dentre elas, uma aproximação com as escolas
do Iguape, tentando estabelecer uma dinâmica nova de ações
tendo como eixo fundamental a interpenetração entre a
dinâmica cultural do lugar e as atividades educativas desenvolvidas
nas escolas.
A partir do amadurecimento do processo de convivência e de familiarização
com a história e com os moradores locais, pretendíamos
intensificar a rede de relações outrora construída,
reatando os seus nós e tentando tecer novos fios que sustentassem
a experimentação do que até então tínhamos
apenas no campo teórico, o entre-lugar, um território
novo, a ser construído coletivamente privilegiando a horizontalidade
das relações e a multiplicidade de saberes e de aprendizagens.
No nosso horizonte, tínhamos (e ainda temos) a construção
conjunta de uma "comuniscola", autônoma e auto-organizada,
embasada e fortalecida pela cultura de sua população.
Uma escola flutuante, que sobrenadando na dinâmica do local conseguiria
absorver em seu cotidiano a conexão de diversos saberes, desenvolvendo
novas abordagens e formas de aprendizagem.
Neste sentido, iniciamos um processo de aproximação com
professores das escolas: Rural de Santiago do Iguape ( que atende 320
de crianças de 1ª até 4ª série) e Estadual
Heraldo Tinoco (que atende da 5ª até a 8ª série,
estudantes do próprio Iguape e de localidades próximas).
O primeiro contato aconteceu na nossa viagem de retomada das atividades
do projeto em campo, nos dias 12 a 15 de outubro. Naquela ocasião
conhecemos Maricélia, uma professora da Escola Rural que se mostrou
conhecedora da história da região, muito interessada em
desenvolver formas de aprendizagem que envolvessem o contexto de vida
dos moradores da comunidade. Durante a conversa, Maricélia nos
contou um pouco sobre os personagens principais que participaram da
formação do povoado, dos antigos engenhos, das construções
religiosas e das festas tradicionais.
A professora falou sobre sua prática educativa em sua sala de
aula, onde realiza um trabalho de incentivo ao conhecimento dos diversos
elementos que compõem a história e cultura local. Esta
conversa nos estimulou ainda mais a estabelecer uma dinâmica de
convivência com professores e estudantes.
Na viagem seguinte, fomos diretamente às escolas Rural de Santiago
e Estadual Heraldo Tinoco, tínhamos o intuito de intensificar
um convívio com os professores que coincidentemente, não
encontramos (a maioria), pois estavam participando em Cachoeira de uma
reunião de AC (Atividade Complementar).
Na Escola Rural de Santiago conhecemos Tiago, Berenice e uma outra professora.
Eles apresentaram muitas propostas interessantes e se mostraram motivados
a realizar atividades em conjunto. Falaram da falta de um trabalho integrado
entre os professores (apenas alguns deles realizam atividades de troca
de experiências, que são muito proveitosas e ricas), da
dificuldade de evitar a evasão de algumas crianças que
precisam trabalhar para auxiliar a renda familiar, e várias outras
situações que dificultam a prática educativa.
Percebemos com este primeiro contato que o trabalho com as escolas seria
um território fértil para se desenvolver uma coletividade,
pois, identificamos, a partir das idéias sugeridas, o interesse
de alguns professores em desenvolver uma dinâmica curricular mais
próxima do contexto local.
Nesta mesma viagem conversamos com a professora Solange, na época,
diretora substituta da escola Heraldo Tinoco. Esta nos falou sobre a
grande evasão ocorrida naquele período, devido a suspensão
feita pela prefeitura do transporte coletivo gratuito aos estudantes,
e também da superlotação das salas e da falta de
professores licenciados que pudessem lecionar na região.
A profª. Solange propôs a realização de uma
reunião com todos os professores das escolas da comunidade. Nesta
reunião poderíamos apresentar e ampliar a discussão
sobre a filosofia do nosso projeto e o desenvolvimento que o mesmo vem
tendo na comunidade, assim, a depender do interesse dos professores,
iniciaríamos, a partir daquele momento, um trabalho de ações
coletivas conectadas às propostas sugeridas pelos próprios
professores.
Conhecemos também o trabalho realizado pela professora Iaci em
sala de aula, seu interesse pelo desenvolvimento afetivo-cultural de
seus alunos e suas práticas, utilizando a música, o teatro,
enfim, as artes em geral. Ela falou com muito entusiasmo sobre a vitória
de um dos seus alunos num torneio de argolinha, enfatizando o quanto
aquele aluno se interessava por esse tipo de competição
e de como foi importante para ele conquistar aquela vitória,
depois de desacreditado pelos colegas. Pediu para que ele relatasse
tal vivência em sala de aula, numa prática de expressão
oral. O violão sempre foi o companheiro de Iaci em sua sala de
aula. Mas no passado ela foi muito criticada pelos professores que não
acreditavam em uma prática pedagógica auxiliada pelas
artes. Agora, orgulhosa, diz que todos estão procurando fazer
o que durante muito tempo ela vem realizando em classe. Também
fica muito feliz ao encontrar seus ex-alunos que, ainda hoje, continuam
envolvidos com as artes.
Em novembro, tivemos a primeira reunião com os professores, na
qual contamos apenas com a presença dos que lecionam na escola
Estadual Heraldo Tinoco, que em sua maioria residem em Cachoeira. Esta
reunião foi caracterizada por um grande mal entendido e por um
descompasso de discursos. Por um lado, explicitávamos a filosofia
e os interesses do projeto com relação à comunidade
e às escolas, os quais estão embasados na idéia
de uma composição coletiva e autônoma, de um novo
território no qual seria estabelecido uma rede de relações
de múltiplas e mútuas aprendizagens; a proposta era construção
de uma "comuniscola", ou seja, uma interpenetração
da história, da cultura, das atividades do cotidiano, enfim,
de toda a dinâmica do local na dinâmica da escola.
O que percebemos, entretanto, foi a rigidez da estrutura escolar imposta
pelas políticas oficiais, sedimentada pelos próprios profissionais
envolvidos com educação.
A pluralidade e o saber popular da comunidade parecem distantes da vida
escolar, que abstrai a interação comunidade-escola. Tais
aspectos, se considerados na dinâmica da escola, possibilitaria
uma aprendizagem, inclusive dos conteúdos curriculares em diversos
espaços, com diversificadas formas e linguagens. Para tanto,
a instituição deveria "ouvir" a comunidade e
seus educandos, e se nutrir de sua realidade histórica, cultural,
social, política e econômica.
Esperavam que nós apresentássemos um projeto pronto de
atividades, o que contraria completamente a nossa filosofia de trabalho.
Queremos construir com a comunidade e com a escola, e não para
a comunidade ou para a escola. Mostraram-se apáticos a nossa
proposta e utilizaram-se do discurso da pressão exercida pelas
políticas oficiais no que se refere ao planejamento curricular
"obrigatório" as escolas.
Tivemos conhecimento, após a reunião, que os professores
que moram no Iguape não foram convidados, fato que por sinal,
causou um grande constrangimento, pois, os mesmo pensaram que nós,
da universidade, não queríamos a participação
deles.
Desta forma, sentimos a necessidade em entrar em contato com todos eles
a fim de explicar a situação ocorrida e reaver o equívoco.
Durante todo dia seguinte passamos de casa em casa conversando com professores
e algumas lideranças de grupos artísticos de Santiago,
convidando-os para uma nova reunião que ocorreu na noite do mesmo
dia.
Esta sim, foi uma grande reunião. Um aspecto interessante foi
a proximidade das idéias entre eles, coisa que, sem dúvida
viria facilitar o trabalho integrado. Uns pediam por uma maior inserção
artística na dinâmica de sala de aula, outros na importância
do conhecimento da história local, mas de maneira unânime,
todos se mostraram convictos da necessidade de mudanças na forma
de administrar o ensino. Mostraram o descontentamento com uma estrutura
hierarquizada e vertical que impõe um pacote de conhecimentos
descontextualizados, desinteressantes. O que ocorreu foi fruto da convergência
muito forte de idéias e interesses numa mesma direção,
manifestadas pelos docentes.
Desde que iniciamos um contato mais próximo com os professores
de Santiago até esta reunião, constatamos que dentre todas
as idéias expostas uma parecia ser unanimidade. A idéia
de formar uma biblioteca na comunidade, se destacou como maior desejo
deste grupo, o que nos levou a direcionar as ações neste
sentido. Um aspecto que também influenciou para que elegêssemos
a proposta da construção de uma biblioteca como primeira
ação conjunta, foi o término do ano letivo nas
escolas que impossibilitava desenvolvermos outro tipo de atividade como
a "Feira de Conhecimentos", muito citada também em
todas as conversas, fechando o período de aulas.
Na reunião interna do grupo, após o primeiro grande encontro
com os professores, concluímos que iniciar um processo de difusão
da idéia de construção (não no sentido estrito)
da biblioteca no Iguape era inteiramente compatível com a nossa
proposta e também viável de ser realizada mesmo em um
período de férias escolares na região.
Voltamos ao Iguape já com a intenção de reunir
mais uma vez os professores e iniciarmos uma fase de elaboração
de um evento que simbolizasse o processo de concretização
da idéia. Nossa expectativa era, através de um evento,
envolvendo oficinas de artes, apresentações dos grupos
artísticos do local, chamar a atenção do maior
número possível de pessoas para a importância de
uma biblioteca na vivência da comunidade.
A partir desta decisão, em todas as viagens seguintes ao Iguape
tivemos também como pauta a atualização do processo
de composição do evento. Neste sentido, fizemos várias
reuniões com os professores e outras pessoas da comunidade, que
se envolveram em maior ou menor grau. Em alguns desses encontros chegamos
a questionar a efetividade do processo, que tínhamos desencadeado,
pela constante ausência de boa parte dos professores nas discussões.
Nosso intuito de envolver o maior número de pessoas na dinâmica
de formação da biblioteca estava restrito aos professores
e às outras lideranças de movimentos artísticos
de Santiago. Achávamos, de início, que esse seria um centro
irradiador dos interesses comuns das pessoas da comunidade, representadas
por esse grupo específico.
A complexidade de desenvolver um processo de formação
de uma biblioteca comunitária ficou mais visível no contato
que tivemos nos dias 16 e 17 de dezembro na comunidade. No dia 16, fizemos
mais uma reunião com os professores. Como já havíamos
identificado, poucos compareceram. Independente disso, além de
decidirmos a data do evento, 27 de janeiro de 2001, soubemos que uma
liderança da comunidade tinha o mesmo interesse. A notícia,
ao invés de soar como algo positivo - mais alguém que
viesse colaborar com o grupo - pareceu significar um ponto de constrangimento
entre as pessoas envolvidas.
No dia seguinte, fomos ao encontro de Sr. Rosalvo, membro de uma das
quatros associações do Iguape que possuía um projeto
de construção de uma biblioteca. Tínhamos a intenção
de explicar as etapas do processo da composição conjunta
de uma biblioteca que já havíamos desenvolvido e convidá-lo
para que confluíssemos nesse propósito. Ele questionou
a presença de pessoas que não fossem da comunidade no
processo de elaboração do projeto, por considerar necessário
que a comunidade se mobilize por conta própria. Reforçamos
que nosso propósito não é, de forma alguma assistencialista,
e que só viríamos a compor um grupo de atividades se o
método de elaboração viesse a evidenciar a participação
efetiva de membros da comunidade. Mesmo com certa resistência,
Sr. Rosalvo decidiu que iria se incorporar ao processo de composição
coletiva da biblioteca.
Retornamos
na primeira semana de janeiro com objetivo de reafirmarmos o compromisso,
rediscutir a proposta e definir as atividades a serem realizadas no
dia 27. Foi mais uma reunião, desta vez, contando com a presença
de alguns professores e outras pessoas da comunidade, ficaram decididas
algumas deliberações, dentre elas, que este evento, que
simbolizaria o início de um processo de construção
da biblioteca, seria chamado " O dia da Biblioteca no Iguape ",
a qual seria provisoriamente instalada na sede da associação.
Elaboramos uma programação de atividades artísticas
a serem desenvolvidas no dia, ficando algumas pessoas (da comunidade
e da universidade) responsáveis para a viabilização
das mesmas.
· Entrando na História de Santiago ( performance teatral
contando a história da localidade);
· Peça teatral sobre a importância do livro, abertura
do evento;
· Tribunal Simulado ( a leitura seria acusada/defendida/julgada);
· Oficina de Fotografia;
· Oficina de Pintura;
· Oficina de Poesia;
· Apresentação do Grupo de Dança;
· Roda de Capoeira;
· Equipe de divulgação do evento.
Na semana
anterior ao Dia da Biblioteca no Iguape, houve a última reunião
antes do evento para confirmar todos os itens que tinham sido escolhidos
no encontro do dia 16 de janeiro. A expectativa inicial era que tudo
estivesse sendo feito progressivamente desde a semana anterior, que
todas as pessoas responsáveis por algum elemento da composição
do evento estivesse num processo contínuo de envolvimento, como
estávamos "do lado de cá". Na ocasião,
tivemos conhecimento que houve uma reunião entre algumas pessoas
da comunidade para discutir a construção da biblioteca
e a participação de pessoas do projeto neste processo.
Este encontro evidenciou o que mais tarde iríamos constatar com
mais clareza. Boa parte dos professores tinha se afastado do evento,
não demonstrado nenhum outro tipo de interesse ou envolvimento
com a idéia de composição da biblioteca. Uma questão
em particular chegou a colocar em dúvida a realização
do evento: "como podemos chamar esse dia de Dia da Biblioteca no
Iguape se a biblioteca não está pronta?". Enfim,
a idéia da biblioteca não tinha ecoado para um número
representativo de pessoas, e o objetivo do evento, que simbolizaria
o inicio de um processo de envolvimento e amadurecimento das pessoas
em relação à proposta, não estava claro
para parte do grupo da comunidade que se apresentava enquanto representantes
nessa tentativa de fusão dos diferentes grupos humanos.
No final de uma conversa um tanto exaustiva decidiu-se que, mesmo com
as divergências, deveria finalmente existir o "Dia da Biblioteca
no Iguape", permanecendo o evento com as mesmas características
anteriormente decididas.
No dia seguinte, fomos contatar com cada pessoa da comunidade que havia
ficado responsável na composição do evento, confirmamos
a participação da maioria e deixamos encaminhadas algumas
iniciativas para serem realizadas até data.
Depois de muitas reuniões, e alguns conflitos, finalmente chegou
o tão esperado Dia da Biblioteca no Iguape.
"
Chegamos. Fiquei um pouco assustada, pois não via ninguém.
De repente, surge o prefácio do livro em forma de teatro, percorrendo
a praça, justamente para acordar o povo, avisando-lhes que o
livro estava abrindo suas páginas para que todos, nelas, viajassem.
Quando
eu, uma pequena partícula que ali estava, embarquei neste processo,
já tinha milhares de passageiros.
Começamos nossa viagem, passando pelo mundo da argila, com parada
obrigatória no adro da igreja.
Todos sujando suas mãos em um produto tão usado na região,
para cobrir o sol, que tanto, suas cabeças, teima em queimar.
No outro
vagão, a interação da comunidade com a universidade,
através de dois corpos.
Fiquei imaginando o quanto podemos criar com nossos corpos e, às
vezes, ficamos parados, nos limitando a usá-lo só para
andar.
No vagão da criançada, podemos observar que os jovens
de amanhã, queriam participar
e a maneira disso acontecer era a tinta usar,
desenhos pintados a euforia de mostrar,
que aquele vagãozinho um dia vai chegar lá.
O vagão que estava parado, começou a funcionar,
pois dos trilhos precisava para seu trabalho demonstrar,
tinha vários passageiros ansiosos para entrar,
no mundo da fotografia, querendo entender e logo chegar.
Mais esse
mundo é infinito, ninguém consegue esgotar,
quando você dominar, uma coisa, outra esta para chegar.
Por isso, milhões de fotógrafos existem, e ninguém,
o outro conseguem imitar,
a sensibilidade de cada um é quem vai dizer o seu lugar.
A cabine
da poesia, muitos jovens estavam lá,
talvez por serem românticos, demonstrando-se sem medo de errar,
este sentimento não envergonha, precisa se soltar,
se o mundo fosse mais poético, talvez nós teríamos
mais calor nos nossos olhares.
A juventude
se animou, e começou a declamar,
primeiro, com vergonha; depois, foi crescendo, e sua voz a se soltar,
fazendo, logo após, poemas, para na praça pendurar,
cheios de orgulho de poderem assinar.
Para o
vagão dos jovens pescadores, o meu chapéu vou tirar,
esta arte de pesca que domina sem errar,
tem a arte da capoeira que bonito souberam jogar
e demonstrando a seu povo, que os precisam valorizar.
Este vagão funcionou uma hora sem parar,
passamos por Angola, viemos, na regional, parar.
Espero que o vagaõzinho dos pintores consiga neste vagão
se juntar.
Casando as duas artes, e juntas poderem demonstrar
que Santiago do Iguape tem riquezas para sobrar.
Para formar o trem, com todos vagões completos, chegou a dança
afro mostrando o seu universo, subiram a rua dançando, com todos
passageiros aplaudindo.
Encerramos esta viagem, com certeza que outras virão, creio que
teremos de aumentar os vagões deste trem. "
Nalva Santos
As lições
anti-românticas do caso biblioteca
Todo esse
processo descrito da composição coletiva de uma biblioteca
no Iguape, foi o primeiro passo de um projeto que visa uma aproximação
com os professores e jovens da comunidade, priorizando aspectos da educação
que tem como núcleo, e símbolo, as escolas. Um passo importantíssimo
no desenvolvimento da metodologia que propomos pois, todos os acontecimentos,
consoantes e dissonantes, foram, de certa forma, didático para
que visualizássemos pontos conflitantes tanto nesta organização
social como no processo de desenvolvimento de qualquer atividade que
se queira coletiva.
A ansiedade de fazermos algo com a comunidade, sentimento decorrente
da nossa "formatação" acadêmica, nos cegou
para situações sintomáticas que foram aparecendo
durante o processo. Demostrou a prematuridade de termos um referencial
material a ser composto num entre-lugar, onde nem nós, da Universidade,
nem a comunidade tem o domínio. Não levamos em consideração
a rede, complexa e não-linear, de relações existente
na comunidade, e mais, acabamos por nos envolver de forma a personalizarmos,
em alguns momentos, um processo que deveria ser coletivo.
Foram pontos visíveis da discordância entre o que propúnhamos
e o que foi configurado ao longo do processo: o afastamento de muitas
pessoas envolvidas no início por desavenças políticas
ou afetivas; o embate expresso por algumas pessoas da comunidade, de
alguma forma próximas dos acontecimentos, nos questionamentos:
"como podemos chamar esse dia de Dia da Biblioteca no Iguape se
a biblioteca não está pronta?" ; "de quem será
a biblioteca?. Questões essas que caracterizavam o não
entendimento da proposta inicial, que era consolidar um desejo da "comunidade".
Uma biblioteca comunitária cujos donos seriam todos aqueles que
se interessassem em utilizá-la. Não um instrumento de
poder político ou institucional.
A partir destes acontecimentos, nos vimos numa situação
um pouco complicada pois, mesmo que mal interpretada, criamos uma expectativa
entre as pessoas que circularam em torno desse evento. Construiríamos,
então, uma biblioteca e assim teríamos o reconhecimento
de um trabalho que, feito dessa forma, feriria nossa filosofia, ou acalmaríamos
os ânimos não atendendo aos anseios, mas preservando a
integridade de nossa proposta? A resposta dessa pergunta é dispensável,
mas a análise dessa situação é imprescindível
para nossas ações futuras.
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